O destino das cidades

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Não se pode ligar televisão ou ler jornal sem nausear. Parece que o bicho homem tem como ocupação única negar algum tipo de racionalidade ou sentimento alardeado para espécie. Para cada Ghandi ou Cristo, grassam: Nero, Hitler, Stalin, Pinochet, Bush… E a lista é infinita. Também para cada filósofo ou cientista, enxames de parvos, incontável fauna rastejante. Mas o que me ocorre hoje é certa desilusão com as cidades. Quando as inventaram, serviam de fortalezas, defesa, abrigos ou demonstração de riqueza e poderio. Talvez por isso as fizeram, na maioria dos casos, de pedra. Material que levaria adiante a lembrança, o nome de seus construtores, ou mesmo sinal das pessoas comuns que nelas viveram. Olhando para trás e para os lados, sinto que as cidades são construções mortuárias. O destino delas é a ruína. Quantos nomes de famosos monumentos urbanos repousam sobre escombros, mitificados destroços para asilo da memória ou momentâneo suspirar de turistas! Onde está a Tebas de sete portas? Alexandria com sua imensa biblioteca? Por onde andam as populações que construíram a clássica Atenas, Roma, Persépolis, Cuzco, Teotihuacan, Tenoctitlan, as metrópolis maias? Tombaram ao roçar teimoso e incansável do tempo. O mesmo sucederá a Nova Iorque, a Paris, Londres, Moscou, Tóquio e, aqui bem perto, Rio de Janeiro e São Paulo. Um velho professor de meus tempos de ginásio profetizava que o Rio ainda ia virar cama de baleia. O aquecimento global e o degelo polar podem fazer isso realidade. Com as chuvas dos últimos dias, pode-se imaginar que a natureza não terá muito trabalho para liquidar a empáfia das megalópoles e seus inventores. Basta um arroto vulcânico, um flato ciclônico, uma indigestão tsunâmica, um momentâneo dilúvio, e vai tudo ao chão, ou à água. Restarão pedras, ferros e lama cobrindo milhares de destinos, sonhos, amores. Nem é preciso esperar, no nosso caso, as roídas do tempo, bombas e mísseis, ou o mau humor da natureza. Já estamos construindo edifícios que são jazigos, parques que são alamedas cemiteriais, ruas e centros comerciais que são praças endereçadas à morte. Na cidade morre-se de tiro, bala perdida, atropelamento, dengue, gripe suína, febre amarela, vermelha ou azul. Morre-se de estresse, de medo, de desamor. Morre-se ainda de sujeira, de poluição. Com muita freqüência, de vergonha de ter que respirar o mesmo ar de ladrões, assassinos, públicos e privados. A cidade que já hospedou sonho de vida, felicidade e utopia de convivência vai se tornando cada vez mais em balneário da morte. Entre as muitas mortes cotidianas, toleradas e desfrutadas, dói mais a da solidão, o impessoal esmagamento desse gânglio sanguinolento que se crê portador de alguma divindade ou de alguma virtude cidadã. Por azar maior é ele que elege seus carrascos. Por isso, caminha na colméia de anônimos (Gabriel Nascente) certo do cotidiano extermínio. Não tem pressa. E antegoza a paisagem futura. Lá, num sol cianótico, lagartos, cobras e ratos enchem ruas, telhados e os símbolos de Sodoma e Gomorra revisitadas.

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