O dólar flexível como sustentação do império norte-americano

Com a agonia dos trinta anos de ouro do capitalismo, o verdadeiro capitalismo retorna ao palco. Nada de civilizatório. O fim desse período é marcado por um dos principais acontecimentos do século 20 com enorme impacto na economia política internacional, p

Depois disso houve uma intensa especulação contra o dólar até a adoção de taxas de câmbio flutuante em 1973. Atualmente o dólar não possui lastro e é flexível (1).


 


 


Como observou Peter Gowan, esses acontecimentos foram geralmente apresentados por diversos analistas como uma importante derrota para o capitalismo norte-americano “em direção a um caótico ‘não-sistema’” (2), na qual o dólar encontraria dificuldades crescentes para se manter como moeda-chave do mundo. Portanto, os Estados Unidos estavam em decadência e seu eminente colapso era questão de tempo. Desde então, já se passaram mais de três décadas e os Estados Unidos permanecem como a principal potência capitalista, e o dólar continua sendo o meio de pagamento internacional. Diante disso, não seria razoável supor que teria havido um certo exagero na tese do eminente colapso norte-americano?


 


 



Déficit em transações correntes significa decadência?
Os economistas ortodoxos consideram passageira a existência de desequilíbrios no balanço de pagamentos. Com a assunção de hipóteses pouco realistas (substituição perfeita entre ativos domésticos e internacionais, equilíbrio natural entre oferta e demanda etc.), no longo prazo esses desequilíbrios deverão se corrigir naturalmente de forma indistinta para qualquer país.


 


 



O erro dessa análise é conceber um mundo homogêneo, ao invés de um sistema econômico extremamente hierarquizado, no qual desequilíbrios fiscais e em transações correntes tem impacto diferente sobre os diversos países. A experiência mostra que aqueles que emitem moeda inconversível não conseguem sustentar déficits em transações correntes por muito tempo. Nessa condição precisam atrair capital externo suficiente para financiar seu desequilíbrio, o que significa sustentar altas taxas de juros e conseqüente valorização cambial. Em algum momento entra a fase de escassez de capital e a crise se instala com efeitos calamitosos. A história da América Latina está repleta de exemplos.  Mesmo os países centrais com moeda conversível, com a exceção dos Estados Unidos, não podem sustentar durante muito tempo grandes desequilíbrios nas suas contas externas sem despertar movimentos especulativos contra suas moedas (3). 


 


 


Por que os Estados Unidos são diferentes?


 


O que deve-se ressaltar é que, ao contrário do que sugere o senso comum, o déficit em transações correntes dos Estados Unidos não pode ser comparado ao de nenhum outro país simplesmente porque são eles que emitem a moeda que serve de meio de pagamento e reserva de valor da economia mundial. Isto permite a enorme vantagem de pagar quase todas as importações na sua própria moeda. Inclusive, parte considerável dessas importações é justamente exportações de transnacionais norte-americanas instaladas pelo mundo.
 Do mesmo modo, quase a totalidade da dívida externa norte-americana é liquidada em dólar a uma taxa de juros determinada pelo Fed, que emite os dólares. Nesse sentido, o professor Franklin Serrano tem razão quando afirma que, enquanto as importações forem pagas em dólar, é logicamente impossível os Estados Unidos não terem dólares suficientes para honrar seus compromissos externos (4).


 


 



É isso que explica como os Estados Unidos, desde de 1982, vem apresentando déficits em transações correntes, em quase todos anos, sem que com isso, em qualquer momento, o papel do dólar no sistema monetário internacional fosse questionado. O único superávit ocorreu em 1991 quando a economia norte-americana entrou em recessão, mas já no ano seguinte retomaram a trajetória dos déficits, e o que se seguiu foi realmente impressionante: em 2000 o déficit alcançou a marca de quase US$ 450 bilhões. Em 2001, com baixo crescimento, o déficit diminuiu, voltando a bater recordes nos anos seguintes. Em 2006 chegou a marca de US$ 856 bilhões, ou seja, quase o dobro do ano 2000 e superior a todos os anos da década de 1990 quando os Estados Unidos tiveram crescimento econômico significativo. É muito difícil imaginar, como um país que consegue, sem qualquer problema, financiar um desequilíbrio nas suas contas externas dessa magnitude pode estar em decadência.


 



Quem está preocupado com o risco de desvalorização do dólar?


 


Em recente avaliação, a Organização das Nações Unidas (ONU) alerta para os efeitos danosos sobre as economias asiáticas que a desvalorização do dólar acarretaria (4). A tendência à desvalorização é observada pelos crescentes fluxos de capitais que essas economias vem recebendo. A desvalorização do dólar traria perda de competitividade das exportações e perdas de capital para o sistema financeiro doméstico e empresas com ativos denominados em dólar, além dos bancos centrais, uma vez que, grande parte das reservas cambias são em dólar.


 


 


É curioso notar que as autoridades norte-americanas não apenas não parecem estar preocupadas com a suposta decadência da sua moeda, mas, pelo contrário, vem utilizando todos os canais diplomáticos para obrigar os países asiáticos a valorizar suas moedas. Mais intrigante ainda, para aqueles que acreditam na decadência do dólar, é que, consonantes com a avaliação da ONU, a Ásia, principalmente China e Japão, vem acumulando nos últimos anos de forma inédita e sistemática reservas em dólar com o intuito de manter o câmbio desvalorizado. A China, por exemplo, está próxima dos US$ 1,2 trilhão, e o Japão por volta de US$ 900 bilhões. E não são apenas os asiáticos. O mesmo ocorre com outros importantes países como Brasil e Rússia. Desde a crise asiática fortaleceu-se a idéia que uma forma de se prevenir contra ataques especulativos está na acumulação de reservas pelos bancos centrais.  É por essas e outras que o anunciado hard landing do dólar já conta duas décadas de frustrações.


 



O dólar como moeda financeira


 


Segundo a análise de Tavares e Melin:
“Tanto as análises do ‘risco inflacionário’, quanto a visão convencional de que o dólar é uma ‘moeda fraca’ por causa da extensão da dívida externa e do déficit público dos EUA, não passam de variações em torno do conventional wisdom econômico, que se revelam manifestações acríticas de um senso comum pouco rigoroso e sem qualquer valor explicativo no mundo pós-Bretton Woods. (…) a questão que se coloca é se existe ou não uma moeda financeira de origem pública capaz de cumprir o papel de securitização. Esta moeda existe e é, naturalmente, o dólar, sob comando da política cambial e monetária do Fed.” (grifos meu) (4)


 


 



Algumas analistas parecem entender que o mundo, ainda hoje, é dominado por transações comerciais. Isto é, a demanda por dólares serviria apenas, ou principalmente, para transacionar mercadorias. Não conseguem enxergar o papel do dólar na globalização financeira, na qual, como a primeira moeda fiduciária da história desprovida de qualquer lastro, desempenha a função de reprodução do capital financeiro em escala global. É assim que o dólar, como moeda financeira, vem permitindo os Estados Unidos financiar seu colossal endividamento com relativa facilidade. É de se esperar que a dificuldade de compreender esses pressupostos leve a conclusões equivocadas a respeito do funcionamento do capitalismo na globalização financeira.


 


 


Por esse prisma não há qualquer evidência da decadência do dólar ou dos Estados Unidos, pelo contrário. Portanto, a perda de sua hegemonia deve ser pensada num prazo mais longo e estar baseada em outras ponderações das quais, saindo da economia vulgar, deverá agregar outras variáveis além da variável econômica, como ensinavam os mestres da economia política clássica.


 


 


Uma ponderação que considero bastante razoável, defendida por Lenin em O imperialismo fase superior do capitalismo, é a de que a dominância do capital financeiro aumenta as contradições e a possibilidade de conflitos entre as potencias capitalistas (7). Como se sabe, Lenin contestava abertamente o marxista alemão Karl Kautsky que, erroneamente, localizava a força econômica do imperialismo no capital industrial e não no capital financeiro, e concluía que as potências industriais constituiriam uma forma de cartel mundial que eliminaria a possibilidade de guerras. Não obstante os Estados Unidos tenham alcançado, até o momento, grande capacidade de coordenação dentro do núcleo imperialista, a instabilidade na era da globalização financeira cria contradições de tal monta que em alguma ocasião deverá abalar de forma mais duradoura esta sua capacidade de coordenação. Isto pode ser observado pela mudança de rumo da América Latina nos últimos anos a partir da vitória eleitoral de presidentes pouco afinados às recomendações de Washington. Soma-se a isso, a emergência da China socialista como potência regional capaz de desequilibrar a atual geopolítica mundial.


 


Notas


 



(1) O dólar é flexível porque seu valor pode variar, segundo os interesses do Fed, banco central dos Estados Unidos.


 


(2) GOWAN, Peter (2003). A roleta global. Rio de Janeiro: Record.


 


(3) Como, por exemplo, a crise do Sistema Monetário Europeu em 1992. 


 


(4) SERRANO, Franklin. “Do ouro imóvel ao dólar flexível”. Economia e Sociedade, Campinas, v.11, n.2, pp.237-253, jul./dez.2002.


 


(5) Cf. MOREIRA, Assis (2007). Queda do dólar é o maior risco para a Ásia, diz ONU. Valor Econômico, 19 de abril.


 


(6) TAVARES, Maria da Conceição e MELIN, Luiz Eduardo (1997). Pós-escrito 1997: a reafirmação da hegemonia norte-americana. In: Poder e Dinheiro: uma economia política da globalização. Petrópolis: Vozes. pp.66-67.


 


(7) Dizia Lênin: “Esta exacerbacíon de las contradicciones es la fuerza motriz más potente del período histórico de transición iniciado com la victoria definitiva del capital financiero mundial.” LENIN, V.I (1979). El imperialismo, fase superior del capitalismo.In:  V. I. Lenin – Oras Escogidas. Moscú, Editorial Progresso.

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