O encontro do G7 e o tributo à hipocrisia

Ao acusar a China de usar a coerção econômica contra outros países e dizer que defendem a paz, a estabilidade e a prosperidade global, os Estados Unidos invertem os fatos

Crítica aos Fariseus, pintura de James Tissot (França, Nantes, 1836 – França, Buillon, 1902).

“Como se diz que a hipocrisia é o maior elogio à virtude, a arte de mentir é o mais forte reconhecimento da força da verdade”.

Embora tenha sido dita há mais de 200 anos pelo escritor inglês William Hazlitt, esta frase ilustra perfeitamente o comportamento dos Estados Unidos e seus aliados na reunião do G7, realizada no final de maio, em Hiroshima, no Japão. Ao tentar atribuir à China tudo o que eles próprios têm feito contra os outros países nas últimas décadas, os Estados Unidos reconhecem, implicitamente, todo o mal que eles próprios têm feito ao mundo apenas para atender aos interesses egoístas de suas classes dominantes. No sentido oposto, tentam atribuir a si mesmos as virtudes que, na verdade, são da China, uma ferrenha opositora das sanções econômicas e quem mais defende a paz mundial, não apenas em palavras, mas com atos.

Ao acusar a China de usar a coerção econômica contra outros países e dizer que defendem a paz, a estabilidade e a prosperidade global, os Estados Unidos invertem os fatos, pois são eles, na verdade, que vêm utilizando há décadas as sanções econômicas como armas de guerra contra outros países e feito das guerras que promovem em todo o mundo seu principal negócio. Desde a declaração de independência americana em 1776, em mais de 240 anos de história, os Estados Unidos nunca estiveram 20 anos sem participar em uma guerra. Segundo estatísticas incompletas, no final da Segunda Guerra Mundial entre 1945 e 2001, ocorreram 248 conflitos armados em 153 regiões do mundo, dos quais 201 foram iniciados pelos Estados Unidos, representando aproximadamente 81%. George F. Kenan, o diplomata norte-americano que foi o principal ideólogo da Guerra Fria escreveu no prefácio do livro “The Pathology of Power”, de Norman Cousins, em 1987, que “Se a União Soviética afundasse amanhã sob as águas do oceano, o complexo militar-industrial americano teria que permanecer, substancialmente inalterado, até que algum outro adversário pudesse ser inventado. Qualquer outra coisa seria um choque inaceitável para a economia americana”.

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Quanto às sanções econômicas com arma de guerra, é importante lembrar que seu uso, em sua forma moderna, começou nas três décadas posteriores à Primeira Guerra Mundial, quando as forças aliadas lideradas pela Inglaterra e pela França lançaram uma guerra econômica sem precedentes contra a Alemanha, a Áustria-Hungria e o Império Otomano. Mais recentemente, as sanções econômicas têm sido utilizadas largamente pelos Estados Unidos como meio para forçar a mudança de regime contra qualquer país que não se submeta à sua vontade, como é o caso de Cuba, Venezuela, Irã e Coréia do Norte, entre outros. Só na guerra da Ucrânia, os Estados Unidos e seus aliados lançaram mão de 3000 sanções unilaterais contra a Rússia e, na própria reunião do G7, no Japão, o presidente Biden prometeu revelar uma nova rodada de restrições dos EUA ao comércio com a Rússia. A estratégia de “reduzir o risco” e “desacoplar” que os Estados Unidos estão utilizando para isolar a China das cadeias globais de suprimento é totalmente baseada no uso de sanções econômicas. E nesse caso os Estados Unidos não estão apenas proibindo que suas próprias empresas exportem certos tipos de microprocessadores para a China, como também forçando que outros países que sequer utilizam insumos produzidos nos Estados Unidos, como o caso da ASML, da Holanda, exportem seus produtos para a China. Esta empresa foi proibida pelos Estados Unidos de exportar a máquina de litografia extrema Twinscan NXE utilizada para produzir microchips com precisão de cinco nanômetros e está fazendo o mesmo com a Coréia do Sul e Japão, dentre outros, no caso de chips mais avançados.

Os outros países do G7, mesmo cientes de que a estratégica americana contra a China apenas atende aos interesses dos Estados Unidos e é prejudicial aos interesses dos demais, pois dependem de suas exportações para a China para manter o dinamismo de suas economias, submetem-se de forma humilhante à vontade americana. Basta lembrar que os principais parceiros comerciais da China, além dos Estados Unidos, são Coreia do Sul, Japão, Austrália e Alemanha. A verdade é que, ao lado da OTAN, o G7 se transformou no capacho onde os Estados Unidos limpam os pés. A reunião do G7 deixou patente que esse grupo de economias ricas, que deveria se preocupar com os graves problemas econômicos que o mundo enfrenta agora, decorrentes, em grande medida, da política protecionista dos Estados Unidos e da guerra comercial e tecnológica que este país trava contra a China, limita-se a servir de capacho para legitimar os interesses egoístas dos Estados Unidos no mundo.

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A declaração assinada pelo grupo, ao final do encontro, fazendo ameaças à China, mostra o quanto os líderes das economias mais ricas do planeta, ao invés de defenderem os interesses de seus próprios países, preferem submeter-se ao papel de força auxiliar dos Estados Unidos em sua luta desesperada para se manter como potência hegemônica global. A guerra na Ucrânia é um exemplo vívido de como os norte-americanos agem sempre em seu próprio interesse sem se preocupar com as consequências negativas para os demais países. Desde o final da Segunda Guerra, os Estados Unidos praticam uma espécie de keynesianismo militar, em que o complexo industrial-militar norte-americano é a principal força propulsora de sua economia. Para eles, é da maior importância que sempre haja alguma guerra em algum lugar do mundo na qual possam estar envolvidos, pois é a única forma desse complexo industrial-militar continuar tendo lucros, pouco importando se centenas de milhares de soldados estão sendo sacrificados e se as populações dos países diretamente ou indiretamente envolvidos no conflito enfrentem dificuldades até para se alimentar.

O fato de diversos países da Europa terem estabelecido controle de preços sobre os gêneros de primeira necessidade, que já não estão acessíveis a grande parte da população de seus respectivos países, é uma prova concreta de como a Guerra na Ucrânia está sendo prejudicial para sua própria população e que seria do interesse de todos apoiar a proposta de 12 pontos feita pela China para acabar com a guerra. Mas como os Estados Unidos não querem o fim da guerra, pois ela é importante para a manutenção do complexo industrial-americano, seus aliados do G7 abaixam a cabeça e aplaudem a atitude belicista dos Estados Unidos. O primeiro-ministro do Japão, Fumio Kishida, que hospedou o encontro do G7 em Hiroshima, cidade que os Estados Unidos arrasaram com uma bomba atômica ao final da Segunda Guerra Mundial, fez questão de convidar o presidente da Ucrânia, Volodymyr Zelensky, para o encontro.

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Apesar de todo o discurso pela paz, Zelensky levou de Hiroshima um pacote de ajuda de US$ 374 bilhões e a promessa dos Estados Unidos de que terá os caças F16 que pediu aos aliados, garantindo assim que a guerra de já matou mais de 200 mil soldados dos dois lados em conflito se prolongue indefinidamente, pois isso é do interesse dos Estados Unidos. A verdade é que se Biden não tivesse sido eleito presidente dos Estados Unidos não existiria a Guerra na Ucrânia, pois ele esteve diretamente envolvido, antes como vice-presidente, na administração Obama, e agora como presidente, com a ideia de empurrar os limites da OTAN até as fronteiras da Rússia e cercá-la militarmente. Isso é a maior prova de que essa guerra é uma invenção americana apesar de toda a conversa de que se tratou de ataque não provocado da Rússia à Ucrânia, inclusive porque antes que a guerra começasse e logo no seu início houve mais de uma ocasião para se chegar a um acordo de paz, mas os Estados Unidos boicotaram todas as iniciativas.

Como afirmou o professor Rodrigue Tremblay, em artigo recente, “o governo israelense e o governo da Turquia tentaram mediar a paz entre a Rússia e a Ucrânia, mas sem sucesso. Primeiro, nos dias iniciais do conflito, no começo de março de 2022, o então primeiro-ministro israelense Naftali Bennett tentou mediar um fim rápido para o confronto Rússia-Ucrânia. Ele esteve muito perto de ter sucesso quando o presidente russo, Vladimir Putin, desistiu de sua exigência de buscar o desarmamento da Ucrânia e o presidente ucraniano, Volodymyr Zelensky, prometeu não ingressar na OTAN. Um acordo de paz bilateral estava pronto para ser assinado em abril de 2022. Em segundo lugar, em março de 2022, o governo turco também tentou aproximar um acordo de paz entre a Rússia e a Ucrânia. Após negociações bem-sucedidas realizadas em Istambul, entre autoridades de ambos os países, os dois lados concordaram com a estrutura para um acordo provisório. Considerando que tanto a Rússia quanto a Ucrânia estavam dispostas a fazer concessões e com os acordos de paz próximos, por que as tentativas de mediação israelense e turca falharam? O ex-primeiro-ministro israelense Bennett deu uma resposta: o governo Biden encarregou o então primeiro-ministro britânico Boris Johnson de ir a Kiev e sabotar qualquer acordo de paz. Algumas potências ocidentais viram como vantajoso que a guerra na Ucrânia continuasse”.

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Não contentes com tudo isso, os Estados Unidos preparam uma nova guerra, tentando replicar a crise da Ucrânia na região da Ásia Pacífico, aproveitando-se das crescentes tensões no estreito de Taiwan, que os norte-americanos e seus aliados do G7 procuram intensificar de todas as maneiras, principalmente estimulando as forças separatistas da ilha. O fato é que a estratégia dos Estados Unidos atualmente é criar confrontos e estimular a divisão em todo o mundo e para isso contam com a omissão e a conivência dos demais países do G7, que mesmo sabendo que isso vai contra seu próprio interesse se submetem docilmente às pressões americanas. Mas o resultado dessa estratégia de estimular a divisão está sendo o crescente isolamento dos Estados Unidos e dos demais países do G7, haja vista que como reconheceu Josep Borrell, principal diplomata da UE, em entrevista ao jornal inglês Financial Times, a maioria dos países fora da Europa se recusa a fornecer apoio militar à Ucrânia ou aderir às sanções ocidentais contra Moscou.  Como reconheceu o diplomata: “América Latina, África, Indo Pacífico: as três grandes regiões do mundo. Não podemos dar como certo que eles estão do nosso lado”.

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