O escuro de uma noite em 67

Dizem que o filme “Uma noite em 67”, de Renato Terra e Ricardo Calil, sobre o III Festival de Música Popular Brasileira, agrada a todos, até mesmo aos nascidos antes e depois de 1967. E mais disseram nos jornais: que o documentário era um passeio pela memória, que era mais que musical, era político, ideológico, uma experiência visceral (!). E assim justificaram tal exuberância: a quantidade das imagens reveladas do festival de música de 67, os rostos da platéia, as entrevistas dos bastidores, são e seriam um mel, um triunfo e grande trunfo.

Por isso fui ao cinema. Por isso assisti ao filme com a respiração suspensa e os olhos mais abertos que um personagem na hora do terror, em close de Hitchcock. Mas vi depois que deveria tê-lo visto com os olhos bem fechados, para melhor sentir o mundo que apenas é cantado na memória. Nos limites do espaço da coluna, digo logo.

“Uma noite em 67” é uma noite com expurgos, ou melhor dizendo, é um documentário com um terrível senso de edição, e de tal modo terrível, grosso, desinformado, que a ditadura brasileira passa como uma sombra leve, suave, até engraçada. Há uma dulcificação do período. Mas o que deseja afinal este colunista? Deseja um filme sobre um festival de música ou um manifesto com passeatas “abaixo a ditadura”? O filme é mu-si-cal, entende? E nada mais natural que, se passeata aparecer, que seja uma contra a guitarra elétrica, como está lá.

O diabo é que o público nascido nos últimos 20 ou 30 anos talvez não saiba que nos tempos dos festivais a música era também uma realização política, e, se me perdoam esta palavra, era uma concreção, o mais próximo de um protesto e uma arma possível. O seu lugar na vida e no imaginário da juventude era um ato inalienável de combate. E de tal modo que, gostar da música de Chico ou de Caetano caracterizava uma opção de guerra – Chico ao lado dos subversivos de política de massa, Caetano ao lado da guerrilha urbana. Mas isso, essa informação fundamental sequer é insinuada nas entrevistas, que fazem a divisão entre o “velho” Chico, porque de smoking, e o “novo” Caetano, porque solto e descabelado.

A edição do filme, ante o mundo riquíssimo de imagens, comete lapsos quase criminosos, ao deixar na boca do produtor Solano Ribeiro, depois de 12 horas de entrevista, a banalidade de que tudo não passava de um programa de televisão. Ah, meus amigos, o amor não passa de duas sementinhas, não é? A tropicália, sem contestação, termina por virar algo como um movimento de muita fantasia e poses e bocas. “Mamãe, mamãe, não chore”. E agora atinjo o que me parece o mais lamentável erro de edição: o público, o distinto e insuperável público que aparece apenas com as suas caras no momento da execução das músicas e dos compositores. Aquele público, para quem não sabe, era a melhor juventude brasileira que houve nos últimos 50 anos. Aquele público, daquele público, saíram os militantes assassinados, os melhores mestres de nossas universidades, os jornalistas mais criativos, gip gip Ivan Lessa, João Antonio e sua arte de chutar tampinhas, os ministros de hoje, a presidenta Dilma Roussef. Ora, por que não entrevistaram aquelas maravilhosas caras hoje? Por que não se procurou saber delas onde estavam, como viam as músicas do festival de 67? Ah, o filme é de música.

O filme, então, é ruim? – Pelamordedeus, apesar de tudo, não é não. O documentário é bom como um arquivo. As imagens valem a ida ao cinema. Mas “Uma noite em 67” não se realiza nem como filme nem como jornalismo. O documentário é bom como uma coleção de vídeos raros do Youtube.

Mas todos nós, à margem das estrelas do palco, que sobrevivemos àqueles malditos anos, que conhecemos o lugar e a dimensão de nossa música popular na ditadura, saímos do cinema com um vazio no peito, com um sentimento de frustração, porque nem sequer vimos Sidney Miller, a estrada e o violeiro, por exemplo. Saímos todos à espera de outro filme, quem sabe, outra obra, outro romance, outra criação onde a música daqueles anos seja uma paisagem humana referente a todo o mundo. Saímos a cantarolar em silêncio “a vida é assim mesmo, eu fui embora”, como ensinava Torquato Neto. Ser público é desdobrar fibra por fibra da paciência.

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