O fardo do “cidadão de bem”

“O Fardo do Homem Branco” (The White Man’s Burden) é um poema escrito pelo inglês Rudiyard Kipling, publicado há exatos 120 anos, para romantizar os incontáveis crimes cometidos pelas principais potências imperialistas da época.

Charge satiriza o poema do inglês Rudyard Kipling representando os EUA e a Inglaterra carregando seus respectivos fardos (os não brancos) rumo à civilização.

No contexto da interiorização da anexação da África e Ásia pelos europeus, e da ocupação e ingerência dos Estados Unidos nas Américas, era necessário justificar essas agressões. Assim, odes à violência eram comuns para se exaltar a firmeza de espírito e a retidão de caráter dos colonizadores que, altruisticamente, abriam mão do conforto de seus lares para salvar os selvagens e bárbaros das trevas de suas existências.

Pois o “fardo do homem branco” de ontem é o “fardo do cidadão de bem” de hoje. Passa-se o tempo, mas o cerne do preconceito de classe continua o mesmo, ainda que por formas distintas.
É assim desde séculos e séculos. As classes dominantes, em todo o mundo, posam como a vítima de um pesado fardo atribuído a si próprias, como se destinadas a sofrer pelos desvalidos. Quanta generosidade!

Desse modo, a invasão dos EUA no Iraque nada teve a ver com o petróleo, mas tão somente com ensinar os iraquianos incultos a votarem. Na Síria, também, nada relacionado aos interesses geopolíticos da região, mas apenas a compartilhar o modo de vida americano com a população local atrasada. Na Venezuela, o nobre manifesto destina-se apenas em promover eleições limpas organizadas, obviamente, a partir de Washington, livrando os venezuelanos de sua verve bolivariana.

O Fardo do Homem Branco, embora tenha sido um dos poemas mais curtos de Kipling, certamente foi o mais extenso em análises e críticas. Kipling justificava o imperialismo não pela busca e exploração dos recursos naturais, mas sim como uma necessidade de se levar a “civilização” aos lugares mais “atrasados” do planeta.

Nossa elite continua a pensar exatamente dessa forma. Os eleitores que elegeram Lula e Dilma são em sua maioria mal instruídos e pouco alfabetizados, restando aos “cidadãos de bem” corrigir essa barbaridade.

Talvez o que mais simbolize esse fardo atual dos “cidadãos de bem” (ou de bens) no Brasil é o discurso contra os benefícios de programas sociais para a população mais carente. O bolsa família, por exemplo, seria um enorme fardo para a classe média por ter de financiar uma multidão de seres acomodados e indolentes.

A atualização do poema de Kipling, escrita pelos “cidadãos de bem” no Brasil, poderia passar a mensagem de se levar a “civilização” das elites que galgaram os postos mais altos da Administração Pública e do mercado de trabalho na iniciativa privada por meio da nova providência divina rebatizada como meritocracia, aos “habitantes sem cultura”, indignos de serem chamados de cidadãos e, portanto, de terem seus votos respeitados, em nome do divino manifesto neoliberal.

Muitos são os fardos de nossos sofridos “cidadãos de bem”, principalmente aqueles que residem em São Paulo ou Sul do país e são obrigados a fazer algo para salvar o país da ignorância dos eleitores do Norte e do Nordeste, fanáticos que são, e que teimam em votar em Lula. Segundo eles, carregam o país nas costas.

É nesse espírito que surge a tal República de Curitiba. Um poder paralelo, composto por “homens de bem”, eleitos por Deus (Deltan Dallagnol que o diga), para liderarem uma cruzada moralista contra os bárbaros de esquerda. O fardo de Sérgio Moro é salvar seus pares daquilo que chamam de populismo.

O verdadeiro fardo que a imensa maioria do povo brasileiro é obrigada a carregar se chama neoliberalismo. O resto não passa de “As aventuras de Tintim” para catequizar selvagens a acreditarem que a corrupção de um sistema é a corrupção de um governo em especial.

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