O fim do regime de Bretton Woods como reação do império norteamericano

Uma das explicações correntes sobre a crise que levou o fim do regime monetário de Bretton Woods refere-se à combinação de dois fatores. Em primeiro lugar, o forte aumento da circulação de dólares devido aos sucessivos déficits no balanço de pagamentos do

Supõe-se então que esses dois acontecimentos criaram um excedente de dólares incompatível com a quantidade de ouro disponível no Fort Knox que deveria servir de lastro para o dólar. Diante disso, em agosto de 1971, incapaz de conter a especulação no mercado cambial, o governo Nixon teria sido obrigado pelos mercados a abolir o acordo que previa a conversibilidade do dólar em ouro.


 



A nosso ver, um dos problemas dessa análise é que ela superestima o papel dos mercados nos acontecimentos que levaram a quebra do acordo de Bretton Woods. Por essa interpretação, o governo norteamericano teria ficado refém do poder avassalador dos capitais privados multinacionais.


 



O objetivo deste artigo é analisar brevemente o período entre o estabelecimento do acordo (1944) até a sua quebra (1971-1973), mostrando que as causas do fim do padrão dólar-ouro foram, em grande parte, conseqüência das próprias políticas de reconstrução da Europa definidas pelos EUA em razão da guerra fria e da sua estratégia para manter a todo custo sua posição hegemônica dentro do sistema monetário internacional. 


 


 


O acordo



 


A guerra não havia terminado quando 44 países decidiram se reunir entre 1º e 22 de julho de 1944 em Bretton Woods (New Hampshire) a fim de construir um novo padrão financeiro internacional capaz de promover a estabilidade econômica no pós-guerra. No entanto, o número é menos representativo do que se imagina. Às vezes não se leva em conta que, de todos os países reunidos, apenas dois, EUA e Inglaterra, tinham condições efetivas de influir nas decisões do encontro, sendo que o primeiro estava numa posição muito superior, pois a guerra, com exceção de Pearl Harbor, foi travada fora do seu território. Os países do Eixo (Alemanha, Japão e Itália) evidentemente não estavam representados. A França ainda permanecia sob ocupação alemã e grande parte da Europa estava devastada pela guerra. A ex-URSS participou marginalmente das negociações e os países menos desenvolvidos tinham pouca influência no cenário internacional.


 



Na Conferência, o governo norteamericano objetivava trazer à tona uma nova ordem econômica e financeira que, de fato, já estava na sua pauta desde o fim da Primeira Guerra Mundial; ou seja, uma ordem baseada no livre comércio e na plena liberdade de movimentação de capitais. Porém, nem tudo saiu como planejado.


 



Duas propostas estavam colocadas na reunião: a proposta da delegação britânica defendida por John Maynard Keynes e a dos Estados Unidos, defendida por Harry Dexter White (1). Keynes, que presidiu a mesa de negociações, já era então um dos mais influentes economistas do mundo. A sua proposta visava à criação do International Clearing Union (ICU), uma entidade composta pelos bancos centrais dos países representados que ficariam com o compromisso de registrar e compensar todos os pagamentos internacionais a partir do bancor, a unidade monetária a ser criada com esta finalidade (2). O banco seria um tipo de moeda mundial, não controlado por nenhum país especifico e que, esperava-se, geraria maior harmonia nas relações entre as nações. O ICU funcionaria como um banco central supranacional podendo conceder crédito aos países associados que estivessem em dificuldades no seu balanço de pagamentos. Além disso, pela proposta britânica, seria permitido aos países adotar restrições cambiais e comerciais sempre que necessário para tornar compatível o pleno emprego com o equilíbrio nas contas externas (3). Keynes considerava vital o controle dos fluxos de capitais de curto prazo, o que estava de acordo com a intenção de manter a estabilidade cambial e de evitar movimentos especulativos via conta capital do balanço de pagamentos.  As taxas de câmbio deveriam ser fixas, porém ajustáveis.


 



Na réplica norteamericana, a proposta de Harry White mantinha o ouro como meio de pagamento internacional, entretanto, apenas o dólar teria seu valor diretamente fixado em ouro (US$ 35 por onça de ouro). Os demais países fixariam o valor de suas moedas a partir do dólar e manteria a paridade fixa, o que deixava o dólar numa posição singular no novo arranjo.


 



Os EUA fizeram prevalecer seus interesses na maior parte dos princípios acordados. Na prática, a única proposta que os ingleses conseguiram emplacar foi aquela que Keynes não abriu mão: o controle de fluxo de capitais de curto prazo. A estabilidade das taxas de câmbio era concebida como peça fundamental do novo arranjo, uma vez que, as desvalorizações competitivas (a política do beggar my neighbor) adotadas pós-crise de 1929 foram consideradas como uma das causas que provocaram a Segunda Guerra Mundial (4). Do mesmo modo, havia certa desconfiança quanto ao papel das finanças internacionais no desencadeamento da Grande Depressão no entre guerras; em razão disso existia um grande apelo à criação de um sistema financeiro que colocasse um fim nos efeitos nefastos das taxas cambiais flutuantes e da sua destabilizing speculation (5).


 


 


Ao invés do ICU, foi criado o Fundo Monetário Internacional (FMI) para administrar o sistema internacional de pagamentos. Mais limitado, o FMI deveria promover a cooperação monetária e proporcionar auxílio aos países que enfrentassem dificuldades nas suas contas externas.


 



Na Conferência ficou estabelecido que problemas no balanço de pagamentos não devessem ser resolvidos através da restrição dos fluxos de comércio entre os países, e eventuais mudanças nas paridades cambiais precisariam ser acordadas de forma cooperativa. O FMI acataria a mudança na taxa de câmbio se o desequilíbrio a ser corrigido estivesse na conta de transações correntes, sobretudo na balança comercial. O acordo previa a possibilidade de variações no valor das moedas que não ultrapassassem +/- 1% dos níveis estabelecidos em relação ao dólar para corrigir o desequilíbrio na conta. Poderiam ocorrer casos em que a desvalorização devesse ser maior: variações superiores a 1% e inferiores a 10% o país se comprometia a comunicar formalmente, e para variações superiores a 10%, apenas com a autorização do FMI (6). Nesses casos, somente seriam permitidos os países que estivessem em estado de “desequilíbrio fundamental” (7).  Evidentemente, o dólar era a única moeda que não poderia sofrer ajustes, sem colocar em risco a ordem monetária internacional estabelecida.


 



Nos círculos da grande finança de Wall Street, tanto a criação do FMI quanto o controle dos fluxos de capitais foram considerados um passo atrás na busca de uma ordem liberal como nos tempos do padrão-ouro.  Como relata Moffitt, a idéia de que os Estados Unidos iriam bancar uma instituição internacional que disputasse o monopólio dos bancos no mercado internacional de crédito sofreu a repulsa dos grandes bancos sediados em Nova Iorque (8). Os banqueiros abominavam a idéia de ter que dividir seu poder sobre o crédito internacional com uma instituição financiada pelo governo norteamericano. Além disso, na visão desses banqueiros, o FMI poderia incentivar a irresponsabilidade fiscal na medida em que os países em dificuldades no seu balanço de pagamentos teriam direito a obter crédito oficial do novo organismo.


 


 


Ajuda aos aliados



 


 


O plano dos EUA após a guerra visava impedir que a nações derrotadas alcançassem um desenvolvimento que pudesse voltar a confrontar novamente as grandes potências. A idéia era desmembrar a Alemanha e transformá-la numa nação eminentemente agrária (9). Destino semelhante esperava pelo Japão. Segundo Ernani Teixeira, o plano norteamericano pretendia castigar severamente o povo japonês por sua “aventura militarista”, impedindo que o Japão tirasse qualquer benefício da nova ordem internacional (10). Mas tudo mudou após o início da guerra fria.  A partir de então a política externa norteamericana assumiu como prioridade o desenvolvimento de seus aliados na Europa e na Ásia, como ficou consubstanciado na aprovação do Plano Marshall em 1947, na dispensa das reparações de guerra e no cancelamento de parte das dívidas. A idéia de uma economia pós-guerra de livre comércio e livre movimentação de capitais mostrou-se inviável. Nos anos seguintes houve tolerância e apoio dos EUA aos seus aliados em relação a medidas protecionistas (subsídios às exportações e restrições às importações americanas), desvalorizações cambiais e abertura às importações a termos vantajosos, ainda que tais medidas tornassem suas exportações menos competitivas. Os EUA também promoveram volumosos investimentos e missões de transferência de tecnologia.


 



Enfim, a gestão econômica internacional desse período garantiu o crescimento e um alto nível de emprego, ficando conhecido como a “idade de ouro” do capitalismo. Por isso, conforme apontou Belluzzo, pode-se afirmar que durante esse período a hegemonia dos EUA foi exercida de forma benigna (11).


 


 


A quebra do acordo


 


A conseqüência direta dessa política – e não poderia ser diferente – foi a rápida recuperação do comércio externo dos países aliados e o forte aumento das importações norteamericanas. Aos poucos o superávit na conta de transações correntes dos EUA foi diminuindo até que em 1971 apresentou seu primeiro déficit.
À medida que o fortalecimento dos países aliados se consolidava, surgiam questionamentos quanto à liderança dos EUA. A partir de fevereiro 1965, a França passou a questionar fortemente o papel do dólar como meio de pagamento internacional, a ponto do então presidente Charles De Gaulle reclamar do “exorbitant privilège” que os EUA alcançaram no sistema monetário internacional. Afirmando que não estaria mais obrigado a aceitar a moeda norteamericana, a França passou a trocar seus dólares excedentes pelo ouro de Fort Knox (12).


 



No início dos anos 1970, o governo norteamericano enfrentava o seguinte problema: precisava recuperar a competitividade de sua economia, mas não podia desvalorizar o dólar sem quebrar a disciplina da regra de Bretton Woods. Primeiramente, buscou-se convencer os demais países a valorizarem suas moedas de forma coordenada; assim, o dólar seria desvalorizado sem que o preço oficial do ouro em dólar variasse. Os aliados, em especial Alemanha e Japão, não aceitaram. Por outro lado, os EUA brecaram todas as propostas de reforma monetária que restringisse o papel do dólar no sistema monetário internacional.


 



No dia 15 agosto de 1971, diante das pressões protecionistas por parte do Congresso norteamericano, do declínio relativo da sua competitividade e sem conseguir alcançar qualquer acordo com os países aliados, Nixon optou pela ruptura unilateral da conversibilidade em ouro do dólar. Para completar, instituiu controles internos de preços e salários e fixou uma tarifa externa sobre todas as suas importações, que seriam conservadas até que os aliados chegassem a um novo acordo, o que só ocorreu em 1973 (13).  A decisão unilateral do Nixon em 1971 foi ratificada em 1973 pelas principais potências capitalistas. Desde então o sistema financeiro internacional passou a conviver com taxas de câmbio flutuantes, sempre conservando a hegemonia do dólar.


 



A justificativa imediata para romper com o acordo baseou-se no argumento de que o desequilíbrio externo dos EUA era determinado por práticas comerciais desleais dos países europeus e do Japão (14).  Mas hoje está claro que o alcance desta decisão crucial do Estado norteamericano foi muito maior do que se poderia imaginar na época. O desenrolar das décadas seguintes demonstrou que o fim do padrão dólar-ouro não foi uma derrota do capitalismo norteamericano, nem se tratou de uma imposição natural dos mercados, mas sim de uma política estratégica bem articulada. Daí surgiu um novo padrão monetário, o chamado dólar flexível, inédito na história das relações internacionais, e ainda mais vantajoso para os EUA. Este acontecimento também marca a volta da grande finança ao centro do poder, numa espécie de revanche contra aqueles que lutaram contra a liberdade dos capitais no período de Bretton Woods. Isso ficou evidente nos anos 1990 quando a vitória do neoliberalismo parecia incontestável e o dólar se configurou como a moeda da globalização financeira.


 


Notas


 


(1) White foi assessor técnico do departamento do Tesouro dos Estados Unidos. Curiosamente foi taxado de comunista e perseguido pela justiça. White teve como um dos seus “inquisidores” o então senador republicano, Richard Nixon.


(2) SKIDELSKY, Robert (2005). “Keynes, Globalisation and the Bretton Woods Institutions in the Light of Changing Ideas about Markets”. World Economic Journal, p. 20.  (http://www.world-economic journal.com/Contents/ArticleOverview.aspx?ID=198)


(3) EICHENGREEN, Barry (2000). A globalização do capital. São Paulo: editora 34.


(4) BORDO, Michael (1993). “The gold standard, Bretton Woods and others monetary regimes: an historical appraisal”. NBRE, Working paper n. 4310, p.25. (http://www.nber.org/papers/w4310).



(5) Os países podem tornar suas exportações mais competitivas através da desvalorização do câmbio. O problema surge quando os outros países seguem nesta mesma direção. Os EUA não apenas se utilizaram deste expediente no entre guerras, como também de políticas tarifárias.


(6) O FMI deveria decidir dentro de 72 horas a aprovação ou não na mudança no câmbio. Caso o FMI não aprovasse, a insistência na variação no câmbio poderia acarretar a expulsão do membro. Cf BORDO, Michael (1993), op cit, p.26.


(7) A conceituação precisa sobre o que seria o “desequilíbrio fundamental” não foi explicitado nos estatutos do FMI. Cf, EICHENGREEN, Barry (2000), op cit, p.136.


(8) Cf. MOFFITT, Michael (1984). O dinheiro no mundo. Rio de Janeiro: Paz e Terra.
De acordo com Gardner, “A associação dos banqueiros norteamericanos declarou que ‘um sistema de cotas em uma associação que dá aos devedores a impressão de que terão sempre direitos a créditos até um determinado montante não é digno de confiança em princípio e gera esperanças que não poderão ser concretizadas’ ”(p.191). GARDNER, Richard (1977). “Bretton Woods”. In: KEYNES, Milo. Ensaios sobre John Maynard Keynes. Rio de Janeiro: Paz e Terra.



(9) WACHTEL, Howard (1988).  Os mandarins do dinheiro: as origens da nova ordem econômica supranacional. Rio de Janeiro: Nova Fronteira.


(10) TORRES FILHO, Ernani Teixeira (2000). Japão: da industrialização tardia a globalização financeira. In: FIORI, José Luís. Estado e moedas no desenvolvimento das nações.


(11) BELLUZZO, Luis Gonzaga (2004). Ensaios sobre o capitalismo no século XX. São Paulo: editora Unesp.


(12) De Gaulle, reclamava da capacidade exclusiva dos Estados Unidos de financiar seus déficits no balanço de pagamentos na sua própria moeda, e propunha a ampliação do papel do ouro no sistema internacional. Desde o início do seu mandato colocou a culpa na entrada de dólares pela inflação na França. No entanto, a posição da França se enfraqueceu com a guerra na Argélia e a morte do presidente De Gaulle em 1970.


(13) SERRANO, Franklin (2004). “Relações de poder e política macroeconômica americana, de Bretton Woods ao padrão dólar flexível”. In: FIORI (org). O poder americano. Petrópolis, RJ: Vozes.


(14) GOWAN, Peter (2003). A roleta global: uma aposta faustiana de Washington para a dominação do mundo. São Paulo: Record.

As opiniões expostas neste artigo não refletem necessariamente a opinião do Portal Vermelho
Autor