“O Juízo”: Ecos da escravidão submersa

Entre mistério e suspense, cineasta carioca Andrucha Waddington remexe os escombros da escravidão e revela a dívida do Brasil com os escravos

Numa das primeiras sequências deste “O Juízo”, o jovem Marinho (Joaquim Waddington) passeia às margens do rio tão despreocupado quanto é esperado por quem visita a fazenda de seus antepassados. Não se assombra ao ver a garota africana se afastando devagar sem voltar-se. E a procura e não mais a encontra. Deste modo, o cineasta carioca Andrucha Waddington (20/01/1970) estabelece o descolamento entre o ser real e o imaginário. E não só para o personagem como para o espectador. Daí surge a mescla de mistério e suspense a ditar o desenrolar da história.

É através desta estruturação dramática que Waddington estabelece, a partir do enxuto roteiro de Fernanda Torres (15/09/1965), os três núcleos de ação do filme: I – Fazenda da família; II- Casa dos vizinhos; III – As misteriosas andanças de Marinho à beira do rio. O elo de ligação entre eles é feito por Augusto (Felipe Camargo/01/08/1960). Além deles há misteriosos personagens que surgem e desaparecem, mantendo o descolamento entre o real e o imaginário. A ligá-los está o passado a ditar o presente de forma tal que a materialidade desaparece.

Não de forma concreta a ponto de o mistério se esvair rapidamente. O centro desta construção narrativa é Marinho em suas andanças e banhos no rio. Ele, sim, une o que o pai busca para ligar o presente a algo que ocorreu no passado. A dupla Waddington/Torres não se furta em mantê-lo sob a vigilância da mãe Tereza (Carol Castro/10/03/1984) e do pai Augusto. Há algo nele a despertar o medo pois seu estado de saúde exige cuidados. Também Augusto entra numa espiral de desconfianças, só atenuada pelo idoso casal de vizinhos Marta Amarantes (Fernanda Montenegro (16/10/1929) e Costa (Lima Duarte/29/03/1930).

São os espíritos dos escravos

É desta forma que Waddington mantém o espectador tenso, não pelo suspense, raro neste “O Juízo”, é o mistério que o leva a tal reação. As revelações do casal Marta/Costa dão a Augusto a ideia de que algo ocorrido no passado lhe dita o presente. Percebe-se não só a intromissão dos desmaterializados na realidade atual, como sua lenta aproximação. Boa construção dramática da dupla Waddington/Torres, porquanto inexiste contraponto às buscas de Augusto. Isto, sim, levaria ao suspense e mostraria a história do ponto de vista do escravo espoliado.

Contudo, as construções narrativas estabelecidas no roteiro de Torres deixa o espectador antever que no passado houve conflitos na fazenda. É onde entra a história tratada por ela e traduzida em imagens por Waddington. As materializações da garota Ana (Kênia Bárbara) e as aproximações de Marinho não se completam, eles não interagem nem com quem os rodeiam na beirada do rio. Portanto, um não existe para outro de forma concreta. Estão apenas ali, enquanto para Tereza, que nem os viu, o filho precisa de tratamento. E concentra nele toda sua atenção e energia.

São os espíritos dos escravos que permaneceram na região em que foram tratados a chibatadas, passaram fome e viveram mais ao relento do que abrigados nas senzalas cobertas de palha. A dupla Waddington/Torres lhes dá visibilidade ao rememorar seu calvário em que o tema central é a dupla exploração do escravo no Brasil colonial. Primeiro como ser humano, segundo como trabalhador, terceiro como dotado de vontade e inteligência. Não à toa não se deixa ludibriar e se materializa no presente.

O passado continua a ditar as imposições do presente

De 1550, quando desembarcaram dos porões dos navios, onde foram enfiados e amordaçados, até 1888, quando da promulgação da Lei Áurea, eles foram a força de trabalho a mover a economia rural do Brasil. A abordagem da dupla é referencial, construída em termos de ação e narrativa, numa trama centrada em dois universos: a) O descolamento de Marinho e Ana; b) A tentativa de Augusto não se submeter ao acerto de contas com Couraça (Criolo). Este, sim, intervém no mundo real a ponto de interagir com quem nada sabe do acordo feito por seu antepassado.

São sequências de ação contínua ditadas pelo passado a interferir na vida da família descendente do senhor de escravos no presente. Com esta estruturação narrativa, a dupla Waddington/Torres faz valer a dialética dos conflitos entre as classes possuidoras e os destituídos de bens. Há, portanto, a certeza de que o passado continua a ditar os conflitos do presente. A diferença neste “O Juízo” é Augusto não ser um latifundiário, pelo menos não existe menção à sua ocupação no presente. Inclusive ele age como o descendente em decadência, sua fazenda não é produtiva (sic).

O interessante na construção dos personagens é Augusto e Marinho não serem construídos como homens capazes de desvendar o passado e enfrentar o desafio do presente. São vulneráveis não só por desconhecerem as falcatruas de seus antepassados, mas principalmente por ignorarem a capacidade do ex-escravo se desmaterializar do mundo concreto e voltar a ele para o acerto de contas por meio da materialidade. A riqueza produzida por Couraça na época dos escravos ao que lhe parece continua intacta. Não percebe a decadência dos descendentes de seus antigos senhores e em que se transformou a antiga e prospera fazenda.

Não é o juízo final são os espíritos

O personagem mais frágil de “O Juízo” é a mãe, Tereza. Desde o início da narrativa, a dupla Waddington/Torres a constrói como atarantada, incomodada com o estado de saúde do filho. Tudo que acontece à sua volta a leva ao pânico. É mãe não se situando no confronto a ameaçar sua família. Está sempre pronta a evadir-se do casarão. Sofre quando o filho fraqueja, tenta defender o companheiro por absoluto instinto. Não diferente das personagens dos filmes de terror, quando não são médiuns ou dotadas de reação suficiente para derrotar os maus espíritos.

É no desfecho da trama que a direção de Waddington evidencia sua capacidade de estruturar a ação eivada de simbologia. Utiliza pouco espaço no canto da rua, deixa a violência se impor, o descolamento acabar. É o universo real dos tempos atuais sendo invadido pelo passado, quando os escravos eram punidos a ferro e fogo. Neste momento ficcional o espectador entende porque Criolo veio em busca do que lhe pertence. Não é o Juízo Final, são os espíritos a vagar que reencontraram seus carrascos.

O Juízo”. Mistério. Suspense. Brasil. 2019.90 minutos. Ficha técnica: Montagem: Sérgio Mekler. Fotografia: Azul Serra. Roteiro: Fernanda Torres. Direção:Andrucha Waddington. Elenco: Felipe Camargo, Joaquim Waddington, Carol Castro, Fernanda Montenegro, Lima Duarte, Fernando Eiras, Criolo, Kênia Bárbara.

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