O Julgamento de Saddam

Volto ao Iraque e ao tema do julgamento de Saddam, que vem ganhando o noticiário, mais uma vez. As mortes e os conflitos em Bagdá, noites em que morrem 20, 30 pessoas, já quase não chamam mais a atenção, num país dilacerado, div

Saddam Hussein presidiu o Iraque entre 1979, quando, num levante cívico militar, destituiu o governo anterior. Ficou no poder até março de 2003, portanto por 24 longos anos. Não é o mais longevo dos dirigentes árabes. Seu colega egípcio, recentemente reeleito no Egito, Hosni Mubarak, que a mídia grande chama de “presidente”, governa já há 25 e “ganhou” nas urnas mais sete anos de mandato popular. Isso sem falar nas petro-monarquias que proliferam na região, onde xeiques vivem como senhores feudais, nababos e sultões em situações típica ainda da idade média.
Durante os anos que se seguiram à vitória da revolução xiita no Irã, com a derrubada do grande aliado dos americanos no Oriente Médio, o Xá Reza Pahlevi, a partir de 1979, os EUA precisavam de um novo aliado na região, especialmente para combater a jovem revolução islâmica. A saída foi conformar-se com Saddam. Não que este gostasse dos americanos, mas na linha maquiavélica de fazer alianças e derrotar inimigos comuns, Saddam vê-se compelido a aceitar ajuda militar americana. Acabou embrenhando-se em uma guerra de oito anos com os iranianos, que vitimou mais de dois milhões de pessoas. Os iranianos, como todos sabem, são esmagadoramente seguidores do xiismo, uma linha fundamentalista do islamismo. Saddam é sunita, digamos assim, uma linha mais “light” da religião, mais secular.
Em todos esses anos de guerra, Saddam era chamado pela imprensa americana de “presidente Saddam”, mas nunca de “ditador” como a partir de 1991 passou a ser taxado. Essa foi a mesma época que, no Afeganistão, ainda ocupado pelos soviéticos, os guerrilheiros do Talibã, liderados por Osama Bin Laden, que, também pela mesma imprensa, era chamado, com seus guerrilheiros muçulmanos, de “guerreiros da liberdade” (em inglês freedom fighters). São dois pesos e duas medidas. Veja na atualidade o caso do Paquistão. É um país de ditadura brutal, onde as pessoas não têm liberdade alguma. O ditador de plantão há muitos anos é o muçulmano Pervez Musharraf, aliado dos EUA. É hoje a ditadura preferida dos americanos. Eles possuem a bomba atômica e ameaçam um conflito nuclear na fronteira com a Caxemira com a Índia. Mas, os estadunidenses preferem calar-se diante disso e criticar apenas o regime de Teerã na sua pesquisa nuclear para fins pacíficos. É uma imprensa que não é imprensa: são panfletos que publicam teses e teorias, que reproduzem ideologias dos detentores do poder. Publicam tudo, menos notícias.
O contexto do julgamento
Apesar de já termos tratado desse assunto antes nesta coluna, nunca é demais voltar a ele, especialmente neste semana que tivemos fatos novos e inusitados. Um país sob ocupação militar não pode ter um governo legítimo, democrático. Isso é elementar. O funcionamento das instituições fica prejudicado, capenga. O “poder” judiciário vive sob o tacão dos ocupantes e é uma farsa, reconhecido mesmo pelas convenções internacionais de Genebra. Só os apoiadores da ocupação podem reconhecer uma farsa dessa magnitude.
Saddam, preso desde dezembro de 2003, vem tendo um comportamento exemplar. Mantém uma moral elevada na prisão. É assistido por um comitê internacional de advogados, que tem mais de mil membros de mais de cem países. Até conferências e encontros internacionais vêm sendo feito em sua defesa. Não que todos esses advogados comunguem com o seu ponto de vista. É a concepção democrática de que mesmo o mais bárbaro dos criminosos tem direito a defesa. Tive a honra de ter sido o secretário executivo o Tribunal dos Povos que julgou Bush por crimes de guerra em Recife, no último dia 21 de abril. Mesmo discordando de tudo que esse presidente americano faz com o mundo, o Tribunal designou um advogado para a espinhosa tarefa de defendê-lo.
No caso do Iraque a farsa é aberta. O julgamento é uma encenação. Saddam e outros que com ele são acusados de diversos “crimes”, praticamente não podem ter contatos com seus advogados. Não existe liberdade alguma para os presos, que na verdade são prisioneiros de guerra do império americano. Tudo é uma farsa grotesca. Não é à toa que um dos que encabeçam o comitê de defesa de Saddam é Ramsey Clark, ex-Secretário de Justiça dos Estados Unidos na década de 1960. Para Clark “Tribunal é para justificar a invasão e validar sua ocupação. É uma ameaça à Lei Internacional e à ONU” (1). Clark é membro de duas ONGs das mais respeitadas dos Estados Unidos, a International Action Center (http://www.iacenter.org/) e a ANSWER (http://answer.pephost.org/site/PageServer?pagename=ANS_homepage), duas das entidades que mais tem feito gigantescas manifestações contra a guerra e exigindo a volta das tropas americanas.
Saddam tem dado declarações de extrema firmeza, apontando seu dedo em riste aos juizes e promotores que o acusam de crimes. Afirma que não aceita em hipótese alguma o julgamento, que é o presidente legítimo do país, que não aceita a ocupação e não faz acordo algum com invasores da nação árabe. Conclama sempre o povo iraquiano a se levantar contra a ocupação de seu país. Diz que as leis e a constituição nada valem, pois são fruto da vontade dos ocupantes, são planejadas pelos invasores. Assim, as “sessões” do tal tribunal que vem procedendo ao “julgamento” de Saddam, com direito a ampla cobertura de mídia, vem registrando bate-bocas entre os inquisidores de Saddam e o próprio. No transcorrer desta semana, com direito a cobertura televisiva da Al Jazeera, Saddam, com dedo em riste, disse em alto e bom som: Não reconheço os agentes aqui nomeados pelo invasor!
 O que se arvora “juiz” do processo chama-se Raouf Abdel Rahman, vem tentando, sem conseguir, conduzir o processo. Saddam o enfrenta, o chama de lacaio e exige ser chamado de “presidente eleito pelos iraquianos”. Outra frase de efeito de Saddam para o “juiz” tem sido: Exijo respeito, você esta à frente do presidente do Iraque eleito pela vontade dos iraquianos! Todas as vezes que compareceu para “depor”, Saddam o fez acompanhado de um exemplar do Alcorão, livro sagrado para os muçulmanos e para a resistência iraquiana.
O que mais me chamou atenção no “julgamento” desta semana foi a atitude do “juiz” Rahman. Uma das testemunha que iria depor contra Saddam, dirigiu-se a ele chamando-o de “presidente Saddam”. Imediatamente o “juiz” sentiu-se ofendido e exigiu que a testemunha deixasse de usar o termo “presidente”. Imediatamente os advogados de Saddam protestaram, acusando o “juiz” de estar censurando um depoimento de testemunha.
Vamos manter nossos leitores informados sobre o andamento deste “julgamento”. Manifestamos nossa plena esperança de que o povo iraquiano tome em suas verdadeiras mãos os rumos do país, expulsando os invasores o quanto antes das terras sagradas árabes.
(1) Jornal Hora do Povo, edição de 12 de maio de 2006, página 6.

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