O papel da Petrobras na ''Opep do etanol''

O memorando do etanol assinado por Brasil e Estados Unidos na recente visita do presidente norte-americano George W. Bush ao nosso país, suscita o debate sobre a soberania nacional brasileira e a integração latino-americana. A Petrobras tem vários projeto

 


A Petrobras, mais do que uma companhia de petróleo, quer ser vista como uma empresa integrada de energia. ''Nossa estratégia prevê a expansão da participação no mercado de biocombustíveis, liderando a produção nacional de biodiesel e ampliando a participação no mercado de etanol'', disse o presidente da estatal, José Sergio Gabrielli, no final de julho passado, ao apresentar o plano de negócios da companhia para o período 2007-2011. O plano prevê investimentos de 700 milhões de dólares em projetos de energias renováveis e biocombustíveis, e mais 660 milhões de dólares na expansão de alcooldutos.


 


O projeto dos alcooldutos foi ampliado para contemplar a região Centro-Oeste e deverá triplicar as exportações brasileiras de álcool. Demanda para isso não falta. ''Estamos fechando contratos com a Venezuela e a Nigéria que deverão somar 250 milhões de litros de álcool neste ano'', disse Paulo Roberto Costa, diretor de abastecimento da Petrobras. A partir de janeiro de 2008, todo o óleo diesel comercializado no país deverá ter adição de 2% de biodiesel. Antecipando-se à medida, a Petrobras está construindo três complexos industriais para a produção desse combustível nos Estados da Bahia, do Ceará e de Minas Gerais.


 


Orçadas em 90 milhões de dólares e previstas para entrar em operação no final de 2007, as fábricas terão capacidade para produzir 144 milhões anuais de litros de biodiesel extraído de óleo de mamona, algodão, soja e dendê. Além disso, a Petrobras vai processar outros 425 milhões de litros de óleo vegetal em suas refinarias. O objetivo é adicionar o óleo vegetal ao diesel comum num processo desenvolvido pelo Centro de Pesquisas da Petrobras (Cenpes) e batizado de H-Bio, que resulta num ''diesel verde'', menos poluente. Durante os testes do H-Bio, foram usados até 18% de óleo vegetal na composição do novo combustível. ''Vamos plantar diesel'', afirmou Costa.


 


Àguas subterrâneas de Mossoró


 


Outro projeto é o desenvolvimento de parques eólicos de geração de energia elétrica, principalmente na Região Nordeste. No Rio Grande do Norte, a estatal opera, desde 2003, a Usina Eólica de Macau. Com capacidade de 1,8 MW (megawatt), ela fornece energia para a operação de poços e unidades de produção de biodiesel. A meta para os próximos cinco anos é ampliar a capacidade instalada de geração de energia elétrica de fontes renováveis para 240 MW, suficiente não só para o consumo próprio da Petrobras como também para comercializar excedente.


 


Entre outros estudos em andamento no Cenpes, está o uso da energia geotermal, que flui do interior da Terra sob a forma de calor. Valendo-se da elevada temperatura das águas subterrâneas em Mossoró (RN), a Petrobras está utilizando um poço antes abandonado no município para preaquecer a água que vai para seus geradores de vapor. ''Agora, queremos testar o uso do gás geotérmico para produzir energia'', diz João Norberto Noschang Neto, coordenador do Programa Tecnológico de Energias Renováveis (Proger), criado pela Petrobras em 2004.


 


Burns e o ''amplo processo de negociação''


 


O que não está claro, ainda, é a forma como esses projetos se inserem no anúncio dos Estados Unidos de investimento em pesquisa e produção de biocombustíveis em conjunto com o Brasil para reduzir em 20% seu consumo de derivados de petróleo. Essa estratégia da Casa Branca foi anunciada no começo deste ano durante uma visita ao Brasil do subsecretário de Estado norte-americano, Nicholas Burns, e do secretário-adjunto para a América Latina, Thomas Shannon.


 


Burns — o terceiro na hierarquia do Departamento de Estado, depois da secretária Condoleezza Rice e do vice John Negroponte — veio sugerir ao governo brasileiro um “amplo processo de negociação” entre os dois países para aumentar a cooperação técnica e científica na área de biocombustíveis. O objetivo, segundo Burns, é transformar os biocombustíveis “num tema central do relacionamento bilateral”. “Estados Unidos e Brasil, juntos, respondem por 80% da produção mundial de etanol. Precisamos estimular outros países a produzir mais para que o etanol se transforme numa commodity de exportação”, disse ele.


 


Manobras que precisam ser acompanhadas


 


Não ficou claro se esta iniciativa significa a criação de uma versão da Opep (o cartel dos países produtores de petróleo) para o etanol — ou “Alco”, neologismo cunhado pelo presidente venezuelano Hugo Chávez numa alusão à Alca. Nos discursos dos presidentes quando George W. Bush veio ao Brasil, surgiram propostas de parcerias e negócios que chegaram a ser interpretadas como o embrião de uma ''Opep do álcool''. O presidente norte-americano elogiou os acadêmicos dos dois países e afirmou que eles podem trabalhar conjuntamente no desenvolvimento de novas tecnologias para o biocombustível. Além disso, afirmou que o Congresso norte-americano aprovou a aplicação de 1,6 bilhão de dólares para pesquisas na área pelos próximos dez anos.


 


É evidente que existe aí um nó para o presidente Lula desatar. Na prática, falta o básico. Com ou sem a ''Opep do etanol'', para que as intenções de Bush sejam viabilizadas o governo brasileiro teria de estar disposto a fazer concessões comerciais — possibilidade que, até agora, não faz parte da agenda do Itamaraty. Com isso, vão surgindo manobras que precisam ser acompanhadas com muita atenção. 


 


Bases brasileiras na América Central


 


No Brasil, Bush mencionou a relação com países pobres, citando especificamente a América Central. ''Quero colaborar com o Lula para fazer com que a América Central aumente sua independência do petróleo e se torne auto-suficiente em energia'', declarou. Dirigindo-se a Bush, Lula declarou que ''a sua visita ao Brasil pode significar definitivamente uma aliança estratégica que permita um convencimento do mundo mudar sua matriz energética''. De acordo com a assessoria de imprensa do Itamaraty, o memorando assinado pelos dois governos permitirá a cooperação Brasil-Estados Unidos na produção de etanol de celulose, a transformação do produto em uma commodity e a transferência de tecnologia para países que queiram produzir o biocombustível.


 


Empresas brasileiras já se movimentam para estabelecer bases na América Central a fim de pegar carona no Cafta (acordo de livre comércio dos Estados Unidos com a América Central) e no CBI (Caribbean Basin Initiative). Desde 2005, duas das maiores exportadoras brasileiras de etanol, a Coimex e a Crystalsev, estão instaladas na região. Em usinas na Jamaica (no caso da Coimex) e em El Salvador (da Crystalsev), o álcool brasileiro é desidratado e vendido para os Estados Unidos livre da taxa de 54 centavos de dólar por galão hoje imposta ao produto que sai do Brasil.


 


Corrida no campo da inovação


 


Desde que iniciou operações na Jamaica, há cerca de dois anos, a trading Coimex já multiplicou por oito — para 800 milhões de litros — sua exportação de etanol para os Estados Unidos. De tudo o que a companhia vende hoje, 12% saem da Jamaica. E essa proporção deve aumentar. A segunda fábrica, em fase de projeto, pode fazer o volume produzido pela Coimex na região mais que dobrar em 2008. Com a unidade de desidratação de etanol que começou a funcionar no ano passado em El Salvador, a paulista Crystalsev, em sociedade com a norte-americana Cargill e a Companía Azucarera Salvadoreña, espera faturar 150 milhões de dólares por ano com a venda ao mercado norte-americano.


 


O Brasil tem chance de liderar uma grande corrida no campo da inovação energética. Na disputa pelo desenvolvimento de um combustível economicamente viável que possa substituir pelo menos em parte a demanda mundial por petróleo, nosso país é, de longe, o fabricante mais eficiente e avançado. ''Vai levar mais de uma década para qualquer outra nação igualar o estágio brasileiro'', diz David Rothkopf, diretor da consultoria especializada em energia Garten Rothkopf e ex-assessor da Casa Branca durante o governo Bill Clinton.


 


Produção de álcool de celulose


 


Com a importância estratégica que o etanol vai adquirindo, a concorrência tende a ficar cada vez mais acirrada. No momento, os países disputam posições numa nova fronteira tecnológica desse campo — a do etanol de celulose, um tipo de álcool revolucionário, que pode ser feito com toda sorte de plantas, incluindo a palha de milho e o bagaço de cana-de-açúcar. Essa corrida pode ser decisiva para o domínio global da área. Quem conseguir desenvolver comercialmente o etanol de celulose vai multiplicar a produção na mesma área plantada.


 


O Brasil está muito mais próximo do milagre — por ora ainda incerto. Um dos grupos brasileiros em estágio mais avançado é a Biocell, companhia criada recentemente pela Votorantim Novos Negócios para atuar exclusivamente nessa área. Ela concentra hoje as melhores pesquisas já feitas sobre a produção do chamado álcool de celulose, reunidas por meio de convênios e licenciamento de patentes com empresas, universidades e institutos de pesquisas estrangeiros.


 


Se a fábrica vingar, a Biocell terá tecnologia para triplicar a produção nacional de etanol. ''Existem outras fábricas similares no mundo, mas nenhuma conseguiu fazer um produto com preço acessível'', diz Fernando Reinach, diretor executivo da Votorantim Novos Negócios. ''O sucesso do empreendimento permitirá ao Brasil dar um enorme salto tecnológico nessa área'', diz ele. Detalhe: todas as inovações desenvolvidas pela Votorantim Novos Negócios são patenteadas nos Estados Unidos.


 


Golfo Pérsico latino-americano


 


Além de deter tecnologia de ponta na área, o Brasil conta com vantagens naturais, como abundância de terras férteis e de água. Na escala brasileira, tal combinação de vantagens não existe em nenhum outro lugar do planeta. O relatório “Panorama da Energia Verde nas Américas” detalha essa supremacia. Conduzido pela consultoria Garten Rothkopf a pedido do Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID), o estudo analisou o que 50 países estão fazendo em termos de regulamentação ambiental, políticas públicas, organização do mercado e investimentos para promover o etanol.


 


De acordo com o trabalho, nada menos que 39 deles criaram leis para desenvolver biocombustíveis. Além disso, 27 tornaram obrigatória sua mistura à gasolina, o que garante demanda no futuro e favorece essa parte do continente. ''A América Latina pode se transformar no Golfo Pérsico dos biocombustíveis, e o Brasil será sua principal estrela'', diz a Rothkopf. Por causa da euforia em torno do etanol, sua produção global deve mais que dobrar nos próximos anos, passando dos atuais 50 bilhões de litros para 113 bilhões de litros até 2012.


 


Caso economias importantes ampliem o uso desse tipo de combustível, o etanol viraria uma commodity global. Nesse caso, o céu é o limite. Se o etanol fosse misturado numa proporção de 10% nos tanques de combustível de todos os veículos do planeta, por exemplo, o mercado passaria dos atuais 50 bilhões de dólares para 120 bilhões de dólares. Outros países também devem entrar nesse jogo, como China, Colômbia e Índia, ampliando ainda mais a oferta do combustível. Sem contar o movimento dos concorrentes, o Brasil sozinho teria potencial para abastecer o planeta de etanol.


 


O braço do Estado brasileiro



 


Se o país usar apenas 20% de suas áreas de pastagens, produzirá o suficiente para substituir 10% da gasolina consumida hoje no mundo. ''Caso o Brasil chegue a esse patamar, o PIB nacional vai aumentar 30%'', afirma Rogério Cezar de Cerqueira Leite, professor da Unicamp e coordenador do estudo ''Ampliação da Produção de Álcool no Brasil''. ''Esses números mostram quanto é importante a liderança nacional no setor'', diz ele.


 


A questão toda se resume à forma como o Brasil está se preparando para lidar com este cenário. Há o problema da propriedade da terra. E do controle da tecnologia. E da definição dos limites para os canaviais. E etc. A conclusão é que se não houver uma forte intervenção do Estado no setor, fica difícil acreditar em vantagens brasileiras no mercado internacional a médio e longo prazos. O país fica vulnerável diante do poderio dos gigantes que controlam a energia mundial. Seria interessante saber o que a Petrobras, o braço energético do Estado brasileiro, pensa de todos estes aspectos da produção do etanol. O tema é palpitante. E urgente.


 


Leia também:


 


Para onde vai o etanol brasileiro?


http://www.vermelho.org.br/base.asp?texto=17831


 


O meio ambiente, a ONU e o socialismo do século XXI


http://www.vermelho.org.br/base.asp?texto=17455


 


A saga do petróleo ontem e hoje


http://www.vermelho.org.br/diario/2004/0825/bertolino_0825.asp?NOME=Osvaldo%20Bertolino&COD=3650


 


Questão do Acre: gás e veneno nas relações Brasil-Bolívia


http://www.vermelho.org.br/base.asp?texto=2132


 


Brasil-Bolívia: o império contra-ataca com a Alca


http://www.vermelho.org.br/base.asp?texto=2021


 


Bolívia, Brasil e petróleo: história de uma conspiração


http://www.vermelho.org.br/base.asp?texto=1700


 


 


 


 



 


 

As opiniões expostas neste artigo não refletem necessariamente a opinião do Portal Vermelho
Autor