O parasitismo dos EUA

Segundo Lênin, o parasitismo econômico é uma característica fundamental do imperialismo ou, em outras palavras, do sistema capitalista em nossa época. Notou o grande revolucionário russo que, em seu movimento, o parasitismo tem a virtude de provocar a dec

Noventa anos após a revolução soviética de 1917, muita água já rolou sob as pontes da história e é hora de reexaminar a obra de Lênin, com espírito crítico, como recomenda o marxismo, não como o leitor religioso diante de um texto sagrado que não admite reparos. Mas, creio que não será exagero concluir que a teoria leninista do imperialismo mantém extraordinária atualidade e ainda constitui um guia valioso para a compreensão da situação internacional. O conceito de parasitismo, adotado de Hobson, assume singular relevância na interpretação da chamada ordem econômica mundial, ainda ancorada na hegemonia do dólar.



 
Para perceber o parasitismo nas formas concretas em que se manifesta na presente realidade internacional e não mais como uma mera abstração teórica ou um dogma, certamente será preciso ir além do que Lênin formulou sobre o tema. Alguns imaginam o parasitismo, com base numa leitura ligeira do “Imperialismo…”, como um traço estático e atemporal do sistema capitalista mundial, que pouco ou nada teria a ver com o cotidiano das nações, bem como os ciclos, as crises e as conjunturas econômicas. Devemos procurar enxerga-lo, pelo contrário, como um fenômeno econômico vivo, palpável na acumulação capitalista moderna, em movimento de grandes repercussões na economia e na política mundial, que, por conseqüência, demanda uma investigação mais séria.


 


Identidade com o déficit em conta corrente



A forma mais destacada em que hoje se manifesta concretamente o fenômeno humano do parasitismo é o déficit na conta corrente dos EUA, que vem crescendo em ritmo preocupante ao longo dos últimos anos e bateu novo recorde em 2006, totalizando 856,7 bilhões de dólares, o equivalente a 6,5% PIB. Para compreender a relação entre uma coisa e outra (sugerida no meu artigo anterior, intitulado Déficit, dívida e decadência dos EUA) é necessário fazer uma digressão ao significado da palavra e do conceito. Afinal, que diabos vem a ser o parasitismo?



Mestre Aurélio Buarque de Holanda ensina, em seu famoso e profícuo dicionário, que parasitismo é a qualidade ou condição do parasito, termo que por sua vez ele define, entre outras coisas, como “o indivíduo habituado a viver à custa alheia”. Considerando o fenômeno sob um ponto de vista social, mais amplo, trocando indivíduo por nação, chegaremos ao significado que Hobson e Lênin atribuíram à palavra.



Assim, a expressão parasitismo não traduz um julgamento de valor sobre o comportamento moral desta ou daquela sociedade, embora não se possa negligenciar este aspecto. Refere-se, aqui, como fenômeno econômico, ao vício de “viver à custa alheia”, cultivado no caso não por um indivíduo mas por agrupamentos sociais maiores, pelos países que, por sua história e forma de inserção na economia internacional, merecem o título de imperialistas. É o caso, hoje dos EUA, Alemanha, Japão, França ou Inglaterra.



Efeito da exportação de capitais



Sob o imperialismo, o fenômeno do parasitismo, que não está restrito a uma classe social, é impulsionado pela exportação de capitais, que tanto pode assumir a forma de investimentos diretos na produção como indiretos (sobretudo empréstimos). “A exportação de capitais, uma das bases econômicas mais essenciais do imperialismo”, observou Lênin, “imprime uma marca de parasitismo a todo o país (imperialista)” por conferir aos capitalistas dos países centrais (mais desenvolvidos) a oportunidade de explorar a classe trabalhadora de outros países (mais pobres e atrasados economicamente) e se apropriar de lucros gerados no além-mar. Acrescente-se que as empresas imperialistas também extraem vantagens no comércio exterior graças ao diferencial de produtividade do trabalho (nos centros em relação à periferia), bem como à capacidade de monopolizar tecnologias e de impor preços de monopólios superiores ao valor das mercadorias. A exploração da periferia pelos países centrais provoca uma inclinação natural do imperialismo para o parasitismo.



Os efeitos do parasitismo não se restringem ao plano econômico. A remessa dos lucros obtidos no exterior pelas transnacionais às respectivas matrizes viabiliza o financiamento de um modo de vida bem mais elevado e confortável nos centros do sistema em relação à miserável e oprimida periferia. Isto tem notáveis conseqüências políticas, incluindo a corrupção da parcela mais remunerada da classe trabalhadora, a “aristocracia operária”, que acaba se transformando em quinta coluna da luta de classes contra o imperialismo.



Degenerescência da social-democracia



Aqui cabe citar o seguinte comentário feito por Lênin no prefácio às edições inglesa e francesa do livro que escreveu sobre o tema:
“É evidente que tão gigantesco superlucro (visto ser obtido para além do lucro que os capitalistas extraem aos operários do seu ´próprio´ país) permite subornar os dirigentes operários e a camada superior da aristocracia operária. Os capitalistas dos países ´avançados´ subornam-nos efetivamente, e fazem-no de mil e uma maneiras, diretas e indiretas, abertas e ocultas.” Foi esta camada de operários aburguesados quem deu suporte à traição da II Internacional Socialista na 1ª Guerra Mundial, à degenerescência pequeno-burguesa dos partidos social-democratas (que em nome do patriotismo e do nacionalismo estreito, chauvinista, apoiaram a guerra imperialista) e quem veio a constituir “o principal apoio social (não militar) da burguesia”.



Da mesma forma, Hobson, que não era nem nunca reivindicou a condição de intelectual marxista, mencionou (no livro “O imperialismo”, escrito em 1902) “o costume do parasitismo econômico, pelo qual o Estado dominante utiliza as suas províncias, colônias e países dependentes para enriquecer a sua classe dirigente e subornar as classes inferiores para conseguir a sua aquiescência”.



As coisas mudaram e as cores com que Lênin pintava a aristocracia operária na época podem até parecer exageradas (e não podemos esquecer que ele escreveu enquanto troavam os tambores da 1ª Guerra Mundial e se aproximava a hora de concretizar a Resolução de Basiléia – 1912 -, da Internacional Socialista, que recomendava transformar a guerra imperialista em guerra revolucionária e foi traída pela social-democracia alemã). Todavia, o fenômeno social persiste, a social-democracia caminhou ainda mais para a direita, a corrupção dos dirigentes sindicais não fez mais do que se agravar, embora não seja um problema restrito às nações imperialistas.


 
A chamada divisão internacional do trabalho também deve ser focalizada em associação com o parasitismo. Ainda hoje a extraordinária diferença entre os valores dos salários nos centros imperialistas e na periferia do sistema não pode ser atribuída exclusivamente à distribuição desigual da produtividade. É explicável, antes, pelo lucro imperialista. Como Lênin fazia questão de enfatizar, a aristocracia operária nunca constituiu mais que uma fração minoritária da classe trabalhadora. Hoje, basta contemplar o que ocorre com os trabalhadores imigrantes na Europa e nos EUA e refletir sobre a ofensiva generalizada do neoliberalismo contra os direitos trabalhistas e previdenciários para perceber que a contradição entre trabalho e capital nunca deixou de existir e está se acirrando também nos centros imperialistas.


 
Além e ao lado dos efeitos políticos, o parasitismo acaba por gerar contradições econômicas que, com o tempo, acabam por promover a relativa decadência dos países imperialistas nos marcos do desenvolvimento combinado e desigual das nações. As diferenças salariais, de condições de vida e de consumo (em relação à periferia), bem como a multiplicação do número de rentistas possibilitada pelas vantagens comerciais e pela repatriação da mais-valia gerada no exterior, têm como contrapartida taxas de lucros e de acumulação de capitais menores no interior das potências capitalistas em comparação com as obtidas nos países que o FMI chama hoje de “emergentes”. Isto estimula o desenvolvimento desigual, pode favorecer um crescimento maior dos PIBs “emergentes” (como ocorre de fato na Ásia), acirra a concorrência entre as nações e constitui a razão de fundo para a forte ofensiva neoliberal contra os fundamentos do Estado de Bem Estar Social em curso na Europa e em outras regiões. O declínio relativo das taxas de acumulação é o caminho da decadência.  
Decomposição da potência hegemônica



Embora sendo uma característica comum a todos os países imperialistas, o parasitismo se desenvolve principalmente no interior da potência hegemônica, que alcança tal posição precisamente por se destacar na exportação de capitais. Se, na época de Lênin e Hobson, era a Inglaterra que exibia os principais sintomas da enfermidade, atualmente “o parasitismo é muito visível nos Estados Unidos”, conforme salientou a “Resolução política” aprovada no 11º Congresso do PCdoB no trecho dedicado à análise do “Quadro Internacional”.



Voltando ao primeiro intertítulo deste artigo, convém estabelecer os laços de identidade entre o parasitismo e os déficits comercial e em conta corrente que Tio Sam vem acumulando despreocupadamente ao longo das últimas décadas. O déficit corrente revela-se a principal forma (embora não a única) em que se manifesta o irrefreável parasitismo do império na medida em que nele se expressa um excesso de consumo (em relação à produção exportável) superior a 800 bilhões de dólares por ano e que dele emerge uma crescente e já colossal necessidade de financiamento externo do balanço de pagamentos dos EUA, que deriva numa notória dependência frente aos investidores estrangeiros. Os efeitos políticos deste fenômeno, embora não sejam o foco deste artigo, merecem maior reflexão e não devem ser negligenciados, mesmo porque uma parcela ponderável do financiamento externo depende dos interesses e da boa vontade do banco central chinês em continuar comprando e acumulando títulos do Tesouro norte-americano.



Andando sem combustível



Alguns analistas já notaram que o rombo nas contas correntes traduz, em última instância, um déficit de poupança, equivalendo ao hiato entre poupança interna (próxima de zero) e os investimentos, coberto com capital estrangeiro. Por esta razão, pode-se dizer que os EUA estão cultivando hábitos próprios de um parasito ou, em outras palavras, o vício (irrefreável) de viver à custa alheia. Atualmente, Tio Sam precisa captar mais de 2 bilhões de dólares por dia no exterior para manter o badalado modo de vida americano (caracterizado por um padrão de consumo relativamente alto dado pelo poder aquisitivo artificial de sua moeda) e evitar a insolvência. Sem o dinheiro alheio já não tem como sobreviver, a menos que reduza drasticamente o padrão de consumo. De acordo com estimativas do economista Paul Vokcer, ex-presidente do Federal Reserve (FED- banco central norte-americano), o império já abocanha cerca de 80% da poupança mundial disponível para investimento no exterior. Um economista estadunidense chegou a dizer que os EUA são como uma locomotiva que anda sem combustível (próprio).


 
O preço da dependência (crescente) de capitais estrangeiros é um endividamento externo líquido a cada dia maior, o que agrava o déficit externo, enfraquece o dólar e torna irresistível a decomposição da hegemonia econômica dos EUA na mesma medida em que os transformam (conforme notou o historiador inglês Eric Hobsbawm) de exportador em importador líquido de capitais. Os demais países, sobretudo da periferia, não estão imunes ao parasitismo ianque. Dado que a magnitude da poupança disponível para investimentos no mundo não é infinita, a necessidade crescente de capital estrangeiro (por parte dos EUA) mantém uma forte e recorrente pressão sobre os fluxos de capitais e é fator determinante de muitos terremotos cambiais e financeiros que têm abalado o globo nas últimas décadas. 

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