“O Passado”: Reverso da mulher atual

Em seu novo filme, o diretor argentino-brasileiro Hector Babenco, deixa de lado a mulher atual e cria outro tipo feminino, vingativo e disposto a fazer tudo para  reconquistar seu amado

Na vida real existem amores desbragados. Daqueles que terminam em tragédia. Há, no entanto, paixões doentias, que de tão intensas se transformam em fanatismo amoroso. Não se trata de simples apego ao ser amado, sob risco de sufocá-lo, mas de uma forma de dependência que se manifesta na incapacidade de viver sem o outro. Em “O Passado”, Sofia (Analia Couceyro), personagem que o argentino-brasileiro Hector Babenco, extraiu do romance de seu patrício Alan Pauls, depois de separada de seu amor de infância, o tradutor Rimini (Gael Garcia Bernal), não consegue mais viver sem ele. Persegue-o por Buenos Aires, como alguém que perdeu uma parte importante de si e precisa, urgentemente, recuperá-la para continuar vivendo. Chantageia-o, manipulá-o, intromete-se em sua vida amorosa e, por fim, revela-se castradora.


 


 


Pauls – e Babenco assume suas projeções – cria um universo de mulheres neuróticas, carentes, dependentes sexuais, possessivas e vingativas, numa época em que personagens iguais a estes são raros. Hoje é normal; elas serem decididas, independentes, fortes e transformadoras. As mulheres de “O Passado”, entretanto, integram uma galeria de solitárias, místicas, desligadas do mundo dual de gêneros. Nas seqüências finais, surgem às dezenas, cheias de resmungos e reclamações. Foram largadas, abandonadas, separadas e, por isto, temem o homem. Esperam, ansiosamente, que algum deles caia em suas garras para dele se vingar. Sofia mesmo cerca Rimini de mimos para evitar que ele se desligue dela, como ocorre em certo momento da relação entre ambos.


 



Passa todo o tempo numa luta doentia por seu amado, submetendo-o a situações inusitadas, surreais. Até o instante em que ele, naufragado, cai de novo em suas teias. Ela, então, reúne suas companheiras de infortúnio amoroso numa espécie de confraria para mostrar-lhes que a reconciliação com o amado é possível. Algo, porém, a engana. Rimini, embora ela pense que o tenha, encontra espaço de fuga, e dele faz uso, enquanto ela se entretém com seu próprio jogo. Ele viveu experiências que o fazem ter uma visão diferente de Sofia e de outras mulheres, menos de Carmen (Ana Celentano), com quem teve momentos de calmaria. Não se trata de fixação. Em certas circunstâncias, elas podem atraí-lo, noutras o transformam em sua presa.


 


 



Mulheres perseguem Rimini como uma presa


 


 



Quando isto acontece, ele sofre. Perde o sentido da relação amorosa. Fica prisioneiro delas. Como Vera (Moro Angheleri), modelo que encontra posando num terreno baldio, e que o obriga a não ter relação alguma com outra mulher, enquanto está com ela. Tem ciúme até da criança que o presenteia e ele, em troca, a acaricia. Não o deixa, inclusive, a pôr na mesa do computador, ao lado dele, uma foto de Sofia. Possessiva ao externo, ela confunde qualquer movimento que o leve a ficar ao lado de outra mulher. Não é diferente de Sofia, por quem acaba tendo aversão, dada à insistência com que ela o persegue, literalmente. E se insinua em sua vida com Vera e depois com Carmen, não lhe dando sossego.  


 


 


A qualquer instante, ela pode surgir e lhe fazer propostas indecorosas. Espalha-se por sua vida, alcança seu pai, gruda-se na secretaria eletrônica e manda até seu novo namorado aporrinhá-lo. É através dela que Pauls, visão absorvida por Babenco, trata do tema a que se refere o título. O passado agarra-se a Rimini de tal forma que o domina. O passado é Sofia, que convive com ele desde a infância, passando pela adolescência, até chegar à idade adulta. Está em fotos, em cartas, em cartões. E de uma maneira que ele, fraco, não consegue se desvencilhar. A todo instante, ela o solicita. O alcança. Torna kafkaniana a relação entre ambos. A voz de Sofia surge em lugares os mais estranhos. Entranha-se nele. Não se trata de maldição, de um erro; ela simplesmente não o admite longe dela. 


 


Pauls e Babenco criam com Sofia não um personagem brotado da realidade, do cotidiano, de alguém que tendo se apaixonado pelo outro, não consegue mais viver longe dele – mas um ser brotado da realidade da ficção, do romance, do filme. Sua relação não é com o real feminino, tão caro à luta de gênero, hoje tão difundida, mas com a figura projetada pelo imaginário construído pelo romance e, por extensão, pelo filme. Destoa, portanto, da realidade das jovens mulheres e mesmo das mais vividas, que, ao invés de compromisso, prefere “ficar”.


 


Salvo exceções, nenhuma delas se enrabicharia da maneira como Sofia faz. Correndo atrás do macho. Prefeririam “morrer” a sair atrás de quem as deixou. Ainda que o amor perdure, ele é sufocado em razão da auto-estima, da busca de uma nova relação. Sofia, não, só tem em mente, retomar sua relação com Rimini. Como ficção, seu comportamento é válido, pois projeta situações que rompem com a dramaturgia do real, que impede novas abordagens das relações amorosas. Ainda que, em “O Passado”, predomine uma distorção do papel da mulher na relação amorosa. A compulsão doentia evita que ela raciocine sobre a possibilidade de uma relação calcada no direito do outro ou dela mesma à separação. É o caso de Sofia.


 



Passado agarra-se a Rimini e o aprisiona


     


 


Suas reações à nova vida do amado surgem de emoções que brotam no instante que ocorrem. Não há uma trama urdida de forma a alcançar certo objetivo. Seus atos são objeto de feridas que insistem em não cicatrizar depois de 12 anos de casamento e de uma separação abrupta. Daí dar a sensação de ser ela um personagem que existe só na realidade do filme. Uma realidade derivada da dramaturgia que traça paralelo entre o que emerge da tela e o que, ela, Sofia, pretende. Nenhum lastro com o mundo real, onde circunstâncias impostas pelas contradições sociais ou pela relação a dois provocam reações as mais desencontradas. Sofia age para além de considerações do amor próprio ou da construção de uma nova vida, longe do ex-marido. E mais: resolve tudo à sua maneira, até chegar ao instante em que o apanha em baixa e ele se deixa levar. E o leva para seu canto, onde a ele se entrega. Inexistem carícias ou afagos, prevalecendo a crua relação.


 



Situações adversas às da realidade atual, salvo casos transversos, de mulheres dispostas a se entregar ao homem de forma desbragada, submissa, beirando o ridículo. Notadamente nas seqüências finais, recorrentes às mulheres que ladeiam Mastroianni em “Oito e Meio” e “A Doce Vida”, em que dezenas delas cercam Rimini. São projeções e materialização, ao mesmo tempo, das que compõem a confraria de Sofia. Parecem frágeis, dispostas a dividir entre si suas agruras. Internalizam suas frustrações e nem por isto deixam de sonhar. Derramam-se sobre o macho, cheias de dengo quando Sofia lhes apresenta o seu. Constituem, assim, numa vertente totalmente diferente da vista hoje no cinema, em que o poder passa a ser medido pela competição entre os gêneros.


 


 


Em “O Passado”, o que elas fazem é tentar recuperar o parceiro perdido, numa contraposição ao imaginário de Rimini.


 



Ele as usa, a seu bel prazer, e as dispensa ao encontrar outra que o satisfaça. Durante tradução da palestra do circense professor Poussiére, hilariante e derradeira interpretação de Paulo Autran no cinema, ele se entrega à equilibrada Carmen. Pouco importa se a poucos metros se encontra Vera, elegante, bela e disposta ser-lhe fiel. Ele pende para a presa mais atraente. E Carmen, ao contrário de Sofia e Vera, oferece mais do que exige. Ajuda-o a superar sua repentina perda de memória e, ainda por cima, desperta nele o instinto paterno. O suficiente para provocam a ira de Sofia. A maneira como ela dá vazão a esta superação, termina por ser uma armadilha para ele.


 


      



Rimini oscila entre a realidade e a queda


   


 


O então macho e conquistador Rimini se vê preso, sem saber resistir. Vai, aos poucos, perdendo o equilíbrio. O que lhe era caro se foi. Ele agora pende entre a perda da realidade e a queda. O passado o agarra e o leva à completa degradação. Distancia-se do cotidiano. Vai, devagar, perdendo sua autonomia. Depende da boa vontade do pai e depois de quem descobre o estado em que se encontra. Justo que ele que quase consegue construir uma vida com Carmen longe de Sofia. Uma ruptura que, se completada, o livraria do passado e o prepararia para o futuro. Isto, ele só conseguiria se forte fosse, se mirasse adiante. Ele não o faz por não saber os limites de Sofia. Numa cena que bem demonstra isto, ele acredita nela mesmo percebendo a tempo que acabaria no abismo.


 


Ela o quer triturar, por tê-la abandonado. Uma vingança que para qual ele já devia ter atentado. Ingênuo, ele acaba seu prisioneiro. E de uma forma que muda sua vida. E Sofia, numa espécie de redenção, leva-o ao centro de sua confraria. Suas participantes o mimam, adulam, admiram sua beleza. E ela, Sofia, se regozija, acreditando ter, enfim, alcançado seu intento. “O Passado”, como se vê, flerta tanto com a idéia da vingança feminina, frente à separação, quanto com a possibilidade da reconciliação pela insistência. Ainda que doentia. E também como a mulher (supostamente) enganada, caso de Carmen, reage, levando o homem a pagar um preço alto demais por isto.


 


Em “O Passado”, o homem não é esperto o suficiente para driblar as manobras da mulher. Por mais que tente dominá-las, são elas que o envolvem, usam, empurram de um lado ao outro. Se elas pagam de forma trágica, como Vera, pela possessão; Rimini, entretanto, falha por não se mostrar determinado, afastando o perigo antes de estar por ele envolvido. Ajuda-o em sua fragilidade, o modo como o mexicano Gael Garcia Bernal o interpreta. Seu Rímini é volúvel, insinuante, atrevido, disposto a mudar de par sem dar tempo a que o amor atual decante. E escolhe as mulheres que lhe atraem pelo jeito descomprometido, a exemplo de Carmen, ou atarantado, como Vera. Não é um conquistador, no sentido tradicional, mas um inconstante.


 



Droga surge como dado cultural, não reflexão da decadência


      


 


Com suas ramblas, bodegas, praças e largas ruas, Buenos Aires é o cenário perfeito para os dilemas de Rimini e suas desgarradas mulheres. A câmera de Babenco enquadra-a às vezes em estreitos espaços, numa angulação de troncos e cerca que protegem os pedestres do tráfego, cômodos tomados por livros, bares, calçada, espaços onde a classe média vive seus dilemas. Outra não é a vida de Rimini cuja vida oscila entre as traduções que faz e as perspectivas que o traem em razão de seus lapsos de memória. Ele se desliga, de repente, em meio a uma tradução. Justo a que lhe permitiria maior independência. Como se toda a memória dos jovens argentinos pudesse ser apagada depois de todos os descaminhos. E, com certeza, ela não está nos livros apenas.


 


Quando se entrega ao trabalho, busca estimulo nas carreiras de pó. O pó como reflexo de uma geração que não mais reflete sobre seu cotidiano e o que fazer dele se não tiver dopado por substâncias químicas. Em qualquer lugar que estiver, lá está ela; sobre o retrato de Sofia, no papel alumínio; servida no banheiro do clube onde dança com Vera e nos fundos de um casarão durante o jantar do traficante. Dá a impressão de que se tornou obrigatória. Toda a estrutura social, principalmente da classe média, não funciona sem ela. Ela está ali e poderia estar em qualquer outro lugar. E sem crítica sob seus efeitos. É Rimini, mas poderia ser qualquer outro jovem, homem ou mulher.


 


A droga virou, mesmo refletida numa obra de arte; o dado cultural dos séculos 20 e 21. Parece obrigatório que esteja numa cena, quiçá numa seqüência. E de forma natural. Na verdade, esta é uma luta que vem da década de 50, quando Otto Preminger dirigiu “O Homem do Braço de Ouro”, mostrando as etapas de um viciado em heroína. Desde então, com diversas nuances, ela surge nos filmes, ora de forma crítica, ora como dado cultural das juventudes burguesa e classe média. Sinal de decadência, dada à falta de reflexão sobre estímulos que se mutam em dependência, depressão e suicídio. Não é natural que, para exercer suas funções a contento, Rimini tenha de estar dopado. E igual a ele outros tantos jovens mundo afora.


 


 


“O Passado” pela condução que Babenco lhe dá traduz o comportamento de uma geração que transita entre o hedonismo e as relações fugidias. Quando percebe que é possível haver relação duradora a comodidade logo o traga. E o apego ao outro funciona mais como possessão que troca. Termina por ser mera imposição, pois o outro pode, de repente, querer outro tipo de relacionamento, ou permanecer no que está a seu alcance, até surgir outro com perspectiva mais condizente com o momento que vive. Rimini deixa esta impressão ao escapulir, sorrateiramente, enquanto Sofia se delicia com a sua posse. O passado que o perseguia, era o mesmo dele precisava  para viver.


 



“O Passado” (El Passado). Drama. 115 minutos. Brasil/Argentina. Roteiro: Marta Góis, Hector Babenco, baseado no romance de Alan Pauls. Fotografia: Ricardo Della Rosa. Diretor: Hector Babenco. Elenco: Gael Garcia Bernal, Ana Celentano, Analia Couceyro, Moro Angheleri, Paulo Autran.

As opiniões expostas neste artigo não refletem necessariamente a opinião do Portal Vermelho
Autor