“O Último Rei da Escócia”: Retrato do preconceito

Em sua estréia em filme de ficção, o documentarista britânico Kevin MacDonald transforma fatos históricos em fantasias que envolvem o ex-presidente de Uganda, Idi Amin Dada, e o médico escocês, Nicholas Garrigan, que se transforma em herói, numa visão eur

Depois dos alemães, dos soviéticos, dos árabes e dos latino-americanos, chegou a vez dos africanos aportarem em Hollywood. Trocou-se as lanças, as caçadas aos javalis e as expedições às misteriosas minas de ouro pelos sanguinolentos conflitos tribais, incensados pelas potências dominantes. Inclusive com os mesmos clichês e os ares de quem projeta personagens reais sob a ótica da ficção. Em momento algum, eles, os personagens, denotam sinais de lucidez – só arremedos de inteligência e atos de insanidade. Assim é, pois os roteiros são escritos para atestar o quanto eles, os negros, são estúpidos e suas nações não deram certo porque lhes faltam o equilíbrio e a sagacidade necessários para levá-las ao desenvolvimento, que uma vez concretizado em programas governamentais se traduzirá em melhorias de vida para o povo.
             
No final, comprovada a inferioridade deste povo de cor através de uma narrativa cheia de reviravolta, sexo, violência e lição de moral, o espectador sairá do cinema convencido de que a África não deu certo porque seu povo não consegue sair do subdesenvolvimento. A mesma coisa se dava com os demais povos em filmes de grande apelo de bilheteria. Os alemães, retratados como débeis mentais, porque não enxergavam os norte-americanos a um palmo do nariz, caiam em armadilhas infantis, que qualquer criança desconfiaria. Situação idêntica passaram os soviéticos e agora os árabes, todos tidos como terroristas, e os latino-americanos como traficantes de drogas. E, claro, faltavam os africanos para completar a lista.


             
Abordagem privilegia visão do europeu


             
Mas, verdade, seja dita, estes pelo menos são mostrados como um povo alegre e aberto às “boas ações” dos bem nascidos do Primeiro Mundo. Talvez sejam ingênuos; por não verem o que há por trás destas boas intenções, ou não consigam enxergar seus próprios erros e possam consertá-los sem que alguns deles, os bem nascidos, lhes digam como fazer. São estas apenas algumas das nuanças que o espectador poderá detectar ao entrar no cinema para assistir a “O Último Rei da Escócia”, do inglês Kevin MacDonald, espécie de cinebiografia ficcionada do ex-presidente de Uganda, general Idi Amin Dada (Forest Whitaker). Uma abordagem não inteiriça, feita a partir do olhar do médico escocês Nicholas Garrigan (James McAvoy), que vai a Uganda para exercer a medicina não por livre opção, mas por um jogo de roleta russa feita no globo terrestre de sua mansão.
             
 Isso mesmo, não uma escolha pensada, em que se pesa os prós e os contra, sim por querer construir uma carreira com os miseráveis de uma paupérrima nação africana. Ele, Garrigan, sim, é o centro da ação e o olhar eurocentrista sobre uma Uganda cheia de contradições, que aparecem aqui e ali, sutilmente para não manchar a “análise” que MacDonald pretende fazer do período Idi Amin (1971/1978). Na primeira parte mostra-se a construção do herói, suas descobertas e seus dilemas ante um homem sorridente e de gestos diretos. Ele se vê espantado com as maneiras daquele general de 1,90 de altura, que se veste como os ditadores terceiro-mundistas, cheios de medalhas e desprezo pela construção democrática. Eles são senhores absolutos da nação, diante dos quais ninguém pode se exceder sob pena de cair em desgraça. E, ele, Garrigan passa a desfrutar de todas as benesses depois de ganhar sua confiança e extirpar alguns de seus males.


            
Médico se transforma em herói diante de Amin


            
Nesta fase de descoberta, ele se defronta também com costumes, manias e desfrutes ugandenses. Dentre eles, a de o general Idi Amin ter três esposas, cada uma delas mãe de seus vários filhos, uma delas caída em desgraça. Começa também a descobrir que ocupar alto cargo no governo, longe de ser um privilégio, é meio caminho para a eliminação pura e simples. Qualquer cuidado é pouco, frente às inúmeras tentações que se lhe apresentam. Então, chega-se ao segundo ato desta epopéia ugandense; ele mergulhando nos prazeres que lhes são facultados por um Idi Amin temeroso de perder seu agora médico particular. Todas as facetas do general já lhes foram apresentadas. As nuanças deixaram de sê-lo, são agora verdades, ações cotidianas. É quando as sutilezas denunciam o papel de Idi Amin nesta ópera bufa: ele foi posto no poder pelos ingleses para se contrapor ao supostamente comunista Milton Obote.
           
Toda a trama se desvenda aos olhos de Garrigan. Fosse ele mesmo uma figura histórica teria uma função menos heróica. Faria o jogo como ele se apresenta: de unir-se a uma das facções ou aos próprios ingleses, quando estes lhe oferecem uma alternativa. Mas se trata de um herói e como tal deve se comportar. Ele então se envolve numa teia que o põe em confronto com o seu próprio protetor. Envolve-se em espionagem, trapaças palacianas, dedurismo e uma paixão difícil de ser sustentada. Faz o filme andar, ir adiante com o espectador torcendo para ele fustigar e derrotar o vilão, no caso, Idi Amin. Até o desfecho, “O Último Rei da Escócia” segue o figurino hollywoodiano. Quando isto acontece, ele não é mais alguém dotado de perspicácia, no sentido real do jogo político num país em que os ditadores se sucedem no poder ao sabor dos interesses das potências européias ou da superpotência norte-americana. Sabe demais e precisa sobreviver, antes que sucumba à suas próprias fraquezas.
            
            
Personagem de ficção obscurece a trama


            
MacDonald é hábil em tecer esta trama, montá-la com um personagem que nunca existiu. Garrigan é uma criação do romancista Giles Foden, em cujo livro é baseado o filme, e dos roteiristas Jeremy Brock e Peter Morgan, que procuram juntar as peças de ficção e da realidade para dar sentido à narrativa. Não estão interessados em elucidar a figura de Idi Amin Dada, nascido na aldeia de Kakwa, em 1925, e tampouco em explicar os motivos que levaram os ingleses a colocá-lo no poder.Apenas uma fala do assessor da embaixada britânica, Nigel Stone (Simon McBurney), clareia este fato. “Ele é um dos nossos”, diz. Idi Amin serviu ao exército britânico como ajudante de cozinheiro no Regimento Kings African Rifles, onde recebeu total treinamento, inclusive sobre como liquidar seus oponentes. Gostava de futebol e de kilt, o saiote escocês. Vestido desta maneira, fazia desfilar diante de si uma companhia ugandense inteira com a mesma indumentária. Chega a dizer para um agradecido Garrigan que, não fosse ugandense, seria escocês.
          
Estas tendências são, porém, parte das influências sofridas pelo general-presidente, ex-chefe de exército de Milton obote. Outra, não menos importante, era seu jeito de tratar seus oponentes, os seguidores de Obote, através de grandes massacres. Cerca de 100 mil pessoas teriam sido assassinadas entre 1971 a 1979, quando foi deposto pelas forças da Frente Nacional de Libertação de Uganda (FNU), comandadas pelo mesmo Obote e o então presidente da Tanzânia, Jules Nyerere. Eram os anos 70, época em que a Guerra Fria ainda imperava e a adesão a um dos lados, União Soviética ou Estados Unidos, era necessária para mostrar a tendência político-ideológica do governo.


          
Joguete nas mãos dos britânicos


          
No princípio, ele ainda seguiu os ingleses; depois, convencido da necessidade de afirmação africana, foi um dos peões no conflito árabe-israelense. No auge deste alinhamento, atraiu a ira de Israel, por abrigar em Entebbe, território ugandense, o avião da Air France seqüestrado pela Organização de Libertação da Palestina (OLP). Durante o resgate dos reféns pelas forças israelenses, morreram 11 passageiros e 20 ugandenses. As pressões européias e norte-americanas se redobraram, e ele rompeu relações diplomáticas com o Reino Unido. Mas, sem apoio político, foi destituído e obrigado a se refugiar na Líbia, de onde o líder Muammar Kaddafi o expulsou. Acabou exilado na Arábia Saudita com suas quatro esposas e 50 filhos, onde morreu em 2003.
          
Nada disso é mostrado com seus motivos e ações por MacDonald. O espectador fica com a sensação de que se trata somente de um bufão sanguinário, não um peão no grande jogo da política internacional. Ele é mostrado como bonachão, tonitruante, gargalhador, uma caricatura, enfim. Há todo momento está envolvido em festas, recepções e viagens, que parecem sem sentido; e delírios de perseguição. É um ser que se move entre sombras e cadáveres. Os tons sombrios e multicolores reforçam o clima de pesadelo que o filme assume. Contribui para isto, a interpretação intensa de Forrest Whintaker (“Traídos pelo Desejo”, de Neil Jordan, “Bird”, de Clint Eastwood). Seu Idi Amin Dada não é um homem, é um fantasma que se move nas sombras, sem cair na realidade. O poder o toma absolutamente. Ao torná-lo alguém que assume o caráter adverso de um ser de “carne e osso”, perde sua dimensão e a análise de seus atos se perde.


            
Espectador não sabe o que é real e o que é ficção


            
Ele não age impulsionado por motivos políticos, por algo maior que suas ambições. Quando demonstra parte de suas idéias, elas surgem cristalinas, como faz ao situar a África como berço da humanidade; o “continente onde surgiram a matemática e a medicina”. Uma identidade que em nada serve aos interesses britânicos. Alguém que, colocado por eles no poder, deveria se submeter às suas imposições, não se voltar para seu próprio continente, como ele o fez ao presidir a Organização da Unidade Africana (OUA). A criatura, enfim, “caiu na real” e tentou seguir seu próprio caminho, ainda que deixando atrás de si uma trilha de cadáveres, fome, miséria e vingança. Ao torná-lo um personagem de ficção, Foden, MacDonald, Morgan e Brock cederam ao impulso de lhe contrapor o jovem médico escocês. Misturaram fatos reais e ficção a ponto de não se saber o que é real e o que é ficção em “O Último Rei da Escócia”. O que fragiliza a análise realista de um dos períodos mais turbulentos da recente história africana.
              
Reforçam o preconceito contra figuras históricas de países do Terceiro Mundo, ainda que controversas, ditatoriais e sanguinárias como Idi Amin Dada, e não contribuem para elucidar o papel das nações européias e norte-americanas na África. Fica-se com a impressão de que aquilo acontece por obra exclusiva do personagem ficcionado, quando por trás dele estão interesses econômicos seculares. Não se quer tirar responsabilidades de generais-presidentes, muitos deles brancos, só respeito à verdade histórica, ainda que submetida à liberdade dramatúrgica. Outro não é o recurso de usar o médico escocês como condutor da ação para, através dele, ridicularizar o presidente de plantão e mostrar a nobreza das ações e sentimentos europeus. Soa hipócrita e preconceituoso. Termina sendo um drama-épico, cheio de ação e violência, nada que o público não esteja acostumado a ver no cinema.


 


“O Último Rei da Escócia” (The Last King of Scotland). Drama, Inglaterra, 2006, 131 minutos. Roteiro: Jeremy Brock e Peter Morgan, baseado no livro de Giles Foden. Diretor: Kevin MacDonald. Elenco: Forest Whitaker, James McAvoy, Simon McBurney, Gillian Anderson.
Observações: (1) Forest Whitaker, Oscar de Melhor Ator 2007. Globo de Ouro de Melhor Ator 2007 (Forest Whitaker). Prêmios de Melhor Filme Britânico, Melhor Ator (Forest Whitaker) e Roteiro Adaptado (Jeremy Brock
e Peter Morgan) no Bafta britânico 2007.


Nota


(2). É o primeiro filme de ficção do diretor Kevin MacDonald, que ganhou o Oscar (1999) pelo documentário: “Um Dia em Setembro”.
 

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