O Zé não mudou de lado!

 

Uma noticia inverossímil, fez-se de repente em verdade e luto: Barros Pinho, ou simplesmente José Maria, Zé Maria para os amigos mais chegados, passou para o outro lado. Mas como assim? Impossível o Zé mudar de lado, de trincheira, homem como ele não faz essas coisas! E de repente, no cenário do que seria um Parque da Paz, lá veio o Zé, em simbiose com a vida, na forma de uma vigorosa e suave sensação que desceu das nuvens sobre as nossas cabeças e emoções numa manhã de domingo, 29 de abril de 2012, numa festa matinal muito parecida com o Zé. Fez sol inclemente, suave garoa, neblina persistente e choveu em cântaros e pétalas de rosa, misturando-se às nossas irrecorríveis, irrefreáveis lágrimas, e a esse coquetel de fenômenos tão naturais quanto o Zé, a cara do Zé. A sorte emocionada das lágrimas na chuva, sob pétalas despachadas de um helicóptero, nos reaproximou do Zé sob o olhar profundo e melancólico de Aracimir, o amor ao qual o poeta derramou generosas e torrenciais métricas ao longo de toda uma existência plena de juventude. E, à força do seu mágico olhar, o inevitável mergulho no passado. Desde quando, ainda nos meados dos anos ’70, nosso périplo — do Zé e dos seus amigos de luta e de fé — pelos bares da orla nas ensolaradas tardes de sábado, reverenciava o desdém pela ditadura militar. Àquela besta que, fustigada pela luta armada, acusava os golpes, mas ainda permanecia de pé e, qual fera atordoada, fazia mais estragos. Zé passava lá em casa, porque era sábado, na Ildefonso Albano, em seu chevette domador de velocidade e ágeis manobras de um piloto arrojado e juvenil. O Zé que desafiou o regime e passeou sobranceiro sobre os desafios que acometeram a nação desde a quartelada de primeiro abril de 1964, quando, como lembrou o Manoel Arruda no entorno da impossível tumba, o Zé foi perseguido e colhido no Piauí, depois encarcerado no 23º BC. Aquele Zé que cativou amizade e respeito, das vespertinas e inofensivas libações sabatinas às combativas ações de cada semana e de cada temporada. O Zé que, vigilante, converteu-me em seu confidente na convivência interna do MDB, onde, comunistas sem farda, convivemos unidos a toda a sorte de brasileiros, uns mais outros menos incomodados com a ditadura. Ali onde homenageamos a luta pela liberdade ao fundar a Tendência Popular da legenda, reunindo patriotas e democratas ciosos pela aurora no ainda sombrio e aquartelado horizonte verde-oliva. E o desassombrado Zé ainda abria as portas do seu Colégio Oliveira Paiva para abrigar as reuniões da TP. Com a mesma desenvoltura o Zé me chamava e pedia para ecoar no jornal Movimento, sitiado em São Paulo, toda ou qualquer ameaça de adesismo do MDB a alguma das três correntes do partido do regime, a Arena. Imediatamente eu atendia o Zé e arremetíamos as noticias com a rubra cor de petardos ao miolo do Congresso Nacional — onde o semanário mantinha uma assídua e privilegiada audiência entre deputados e formadores de opinião desde as estripulias e diatribes de conspirativa resistência dos autênticos do MDB. “Adesismo no sertão”, disparou certa vez o Movimento, fermentando frisson no Congresso Nacional. O tempo foi passando e, após o crepúsculo da ditadura, em 1985, a gente ainda reclamava daquela transição negociada, que, inoculando de novo nossa História, de fato não superou a nebulosa vigência de 21 anos às trevas. No Ceará, deu Tasso em 1986, quando trocamos três coronéis por um, do asfalto. Mas o Zé, na rarefeita cota democrática, virou secretário de Cultura e fazíamos — com um grupo ampliado na casa do Eudoro, secretário de Agricultura —, as reuniões para manter a unidade e estruturar a resistência num novo e pedregoso ambiente. E foi assim a vida inteira, onde o Zé só poderia errar nos delitos da partidária lealdade. Mais perto dos dias de hoje, veio a nossa derradeira peleja: homenagear, no Senado Federal, Gerardo Mello Mourão — jornalista, poeta e escritor brasileiro —, dessa vez com a assinatura de Inácio Arruda. Novamente se agigantou o Zé para exaltar post mortem o amigo guerreiro dos bacamartes e das letras dos Inhamuns. Foi aquele pronunciamento que tecemos, enfeitado de enérgica alegria, viva e latente. E o Zé prosseguiu, vivo e pulsante, ali nas pelejas do Maracanaú, por onde correm as águas de maracanã, banhando-se lá embaixo nas frondes e nos reflexos lampejantes da lendária ave da original Vila do Santo Antônio do Pitaguary. Tal qual maracanã nosso Zé despencou naquele domingo de abril ao voar em pétalas e simbólica dádiva sobre as nossas mentes e corações — indiferentes às roupas encharcadas que se grudavam na pele com o sabor úmido, a um só tempo doce e salgado, das lágrimas ao vento e à chuva. E o nosso Zé, guerreiro e poeta, passeou nas nuvens, encantado, entre Pitaguaris, Jaçanaús, Mucunãs e etnias do passado, até nos contemplar com seu dilúvio de versos e rimas na forma de pétalas e arrojadas gotas d’água arremetidas do céu. É por isso que, com a vida, não se pode acreditar que o Zé passou para o outro lado. Ele não muda de lado e não morre; Zé fica com a gente e com sua perene Aracimir. Que viva ao nosso lado, o Zé Maria, Barros Pinho, o (sempre) nosso Zé!

*Sociólogo, jornalista, escritor e, com muito orgulho, eterno amigo do Zé

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