Ofensiva Vermelha

O mundo está à espera de um pronunciamento milagroso de Barack Obama. Algum plano genial com a solução para uma das mais severas crises da história do capitalismo. Enquanto a salvação não chega o governo vai realizando medidas paliativas a fim de evitar a

A indefinição e o medo de que a crise se aprofunde crescem no mesmo tom que a insatisfação com a liderança global norteamericana. Muito já se falou a respeito do papel que os Estados Unidos passaram a desempenhar após o fim dos acordos de Bretton Woods em 1971, quando ficou para trás a hegemonia benigna que ajudou a reconstruir a Europa devastada pela Segunda Grande Guerra. O que se verifica desde os anos 1970 é que, ao contrário do que afirma a chamada teoria da estabilidade hegemônica, a sua liderança tem trazido conflitos e instabilidade à ordem global estabelecida.


 



A insatisfação é ainda maior porque os Estados Unidos criam os constrangimentos, e depois acabam se beneficiando dos próprios problemas criados. Isso ficou mais claro durante os anos 1990, quando o mundo assistiu a uma série de crises financeiras em várias partes do mundo, fruto em grande parte da desregulamentação dos mercados financeiros internacionais, ao mesmo tempo em que sua economia entrou num processo de crescimento econômico acelerado.


 



Agora, a crise financeira mundial originou-se justamente no sistema financeiro norteamericano, formando-se quase um consenso sobre a responsabilidade dos mercados desregulados na crise. Apesar disso, não há qualquer sinalização de que os Estados Unidos apoiarão medidas que reverta o processo de liberalização das finanças e, portanto, qualquer sistema global de regulação do mercado financeiro, como pretende a União Européia, particularmente França e Alemanha. A proposta defendida por Barack Obama prevê que cada país, individualmente, estabeleça regras domésticas de prevenção ao sistema.


 



 Provavelmente à medida que a crise perdure, ou de fato se transforme, segundo o economista Roubine (1), numa crise em L (estagdeflação), apareçam novas reformas pontuais, porém nada que tire a “criatividade do mercado financeiro”, como gostam de lembrar os liberais mais empedernidos. Neste caso, é sintomático que o resgate às instituições norteamericanas também tenha servido para o pagamento de bônus aos magnatas da AIG. É uma prova inequívoca do poder da plutocracia financeira, ainda que não devesse trazer tanta surpresa quando se têm em mente as conexões de Larry Summers e Geithner com Wall Street (2). 


 



Por outro lado, a China percebeu bem os limites colocados pela agenda de Obama. O presidente do Banco Popular da China, Zhou Xiaochuan, em artigo recente que servirá de discussão no G-20, defende uma reorganização do sistema monetário internacional (3). A proposta não é inédita e já tinha sido levantada pela Rússia há algumas semanas: trata-se de ampliar o uso do Direito Especial de Saque (SDR, em inglês), emitido pelo FMI, a ponto de se tornar o principal ativo de reserva mundial. No artigo, Xiaochuan argumenta que a moeda de reserva internacional não deve servir aos interesses de qualquer nação em particular, e propõe o estabelecimento de regras de emissão que salvaguarde a economia global e favoreçam a estabilidade financeira. De acordo com Xiaochuan, a frequência e magnitude das crises financeiras após o colapso do sistema de Bretton Woods demonstram que os custos do atual padrão monetário são maiores que seus benefícios.


 



A moeda é um elemento poderoso na competição entre as nações. Logo a proposta foi rejeitada pelas autoridades norteamericanas. De maneira cínica o atual conselheiro econômico de Obama, Paul Volker, questionou as razões da China não vender suas posições em dólar. Volker sabe que seria inviável aos chineses utilizarem suas reservas internacionais contra o dólar, já que isto significaria desvalorizar suas próprias reservas: “Acho que os chineses são um pouco ingênuos ao dizer agora: não é tão ruim manter todos esses dólares? Eles mantêm os dólares porque escolheram comprar dólares e eles não querem vender os dólares porque não querem depreciar sua moeda. Eles deveriam fazer as contas e não vir reclamando de nós por tudo que acontece”, disse ele (3).


 



 Não restam dúvidas: quase todos reconhecem os problemas com o atual padrão monetário internacional e que o sistema precisa ser reformado. O problema é descobrir como colocar em prática as reformas. Vale lembrar que, o padrão dólar-ouro surgiu através de acordos após uma guerra mundial devastadora. E o atual padrão dólar-flexível nasceu durante a Guerra Fria com uma decisão política unilateral e sem qualquer acordo posterior ou estabelecimento de regras. Como não há qualquer economia capaz de decretar unilateralmente o fim do atual padrão monetário, resta saber o quão grave deve ser a crise financeira para que a perspectiva de um novo acordo seja possível.


 



De qualquer forma, ainda que não seja novidade, partindo das autoridades chinesas, a proposta de substituição do dólar como moeda de reserva tem um simbolismo importantíssimo. De acordo com o cientista político José Luis Fiori, a grande novidade desde a década 1990 é a relação entre China e EUA, que de forma análoga reproduz a relação privilegiada dos Estados Unidos com o Japão, desde 1945 (5). Mas com uma novidade capital: ela é ao mesmo tempo complementar e competitiva. Se for levada a sério a proposta do presidente do Banco Popular da China, essa relação será cada vez mais competitiva.


 


 


(1) COSTA, Antonio Luiz (2009). “O capital é vermelho”. Carta Capital, n.535, 4 de mar.


(2) ROUBINI, Nouriel (2009). “Para evitar o pior”. Carta Capital, n.537, 18 de mar.


(3) GOODMAN, Amy (2009). “Não há resgate para os mais atingidos”. (http://www.cartamaior.com.br/templates/colunaMostrar.cfm?coluna_id=4201).
(4) O texto “Reform the International Monetary System” está disponível na página do Banco Popular da China (http://www.pbc.gov.cn/english/).


(5) TESOURO e Fed defendem dólar como reserva” (2009), Valor Econômico, 25 de mar.


(6) FIORI, José Luís (2007). “O poder norte-americano”. In: O poder global e a nova geopolítica das nações. São Paulo: Boitempo Editorial.

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