Os jovens marxistas no romance
Na longa noite do bar da Encruzilhada, sopramos o mundo e nele plantamos o nosso ânimo, a nossa alma conforme o desejo.
Publicado 04/05/2018 10:27
– Meus amigos – fala Zacarelli -, que forças extraordinárias vão se levantar da humanidade.
A vitrola wurlitzer perto estronda. Nesse barulho podemos falar tudo, ou quase tudo, sem medo de que sejamos ouvidos, sequer pela mesa vizinha onde pode estar um policial.
– O gigante da China já se levantou e anda – digo. Ainda que uma voz do diabo me sussurre “para onde?”, eu não o escuto, porque o maior diabo agora é a revolução chinesa. Ela vai nos redimir da desgraça em que vivemos.
– É claro – fala Alberto. – Mao é um pensador.
– Ele é um gênio, bicho – acrescenta Zacarelli. – O nível de Mao é o de Lênin. Não tanto pela contribuição à teoria marxista.
– E por que não? – Alberto pergunta. – Você já leu um texto dele chamado “Sobre a contradição”?
– Sim, claro – responde Zacarelli. – Olha, eu digo assim… como gênio prático, Mao é mais prático, entende?
– Mas a revolução de 1917 deve muito à condução prática de Lênin. Ou não? – Alberto fala. Ele é a própria contradição de Mao Tsé-Tung. Imprevisível, ele vai de um ponto a outro feito mercúrio de termômetro, ora frio, ora quente. Zacarelli tenta acompanhar as oscilações da escala Celsius:
– É claro. Sem Lênin, não havia 1917.
– Danou-se. – me espanto. – Ele fez o tempo? Não deve ter sido assim.
– Lênin foi fundamental, rapaz! – Alberto quase supera o volume da wurlitzer. – Sem ele, não tinha 1917.
– Assim… – Zacarelli dá um passo à frente, dois atrás. – Assim… não é que sem ele não haveria a revolução. Mas sem ele a revolução não teria a cara que venceu na história.
Narinha, a namorada de Alberto, a tudo assiste. Ela não é da discussão teórica, dos enfrentamentos na mesa do bar. No entanto, é jovem de rara dedicação às atividades de agitação estudantil. Cunhada de Vargas, vem do movimento secundarista, de onde mergulhará com Alberto no furacão próximo. Agora, não. Está de short, e com suas belas pernas distraída pisa nos astros, como na canção de Orestes Barbosa. Sorri cúmplice para ele, à espera de cantar onde houver um violão. Narinha não sabe se faz vestibular de História, Letras ou Psicologia. Se fossem os três as três partes dela, estariam bem organizados. Mas o mais grave da sua graça é que deseja o exclusivo curso da revolução. Pois onde, em que universidade receberá aulas práticas, encantadoras, quanto a enfrentar a ditadura brasileira? Onde, no Vietnã? Mas para aquele sacrifício sob o napalm ainda não está preparada. Talvez em Cuba, para o treinamento em guerrilha? Sim, pode ser, porque sente um gosto de caldo de cana, um socialismo mais conhecido do Recife. Mas agora não. Para ela o exemplo de Che na Bolívia ainda não está na ordem natural dos acontecimentos. Então ela os ama. A todos, a Fidel, a Che, a Ho Chi Minh, a Mao Tsé-Tung, a Zacarelli, até a mim, por efeito de vizinhança na mesa. Mas de um modo especial ama a Alberto, com quem vai casar e viver enquanto houver revolução. Assim espera. Mas no projeto de modo claro, nesta noite, enquanto é a única mulher na mesa, pisa nos astros. Nem precisa de sapatos altos. Pisa descalça, se preciso for, como uma felina a circular na savana. Quem a desejar se fala “é de um companheiro, respeita”.
Eu não a desejo, penso agora, porque ela não me fala ao intelecto. Devo dizer, ela não me atrai à semelhança de musa. Mas nesta noite a felina passeia com suas vigorosas pernas pela savana. E na verdade, sem ela a noite seria menor, seca, estéril e sem graça. A maldade humana diria que no discurso todos queremos impressioná-la, falar para ela, para a sua fundamental presença de fera que deveria nos caçar. Seríamos mordidos e comidos por ela com a maior alegria. Ah se soubéssemos, fora do gracejo, que leoas destroem. Mas a maldade humana, por natureza, não sabe distinguir o grande do pequeno. Isto é, transforma toda generosidade em interesse mesquinho. Porque fora da maldade bem sei que nos envolvemos nos discursos com ideias tão boas ou melhores que o sexo com a bela graça. O discurso para nós é a revolução. E a revolução não é uma palavra. É a mais longa enciclopédia repleta de verbetes, significados, entradas, remissões, notas de pé de página. O que digo? Que mania estúpida é essa de querer abarcar a riqueza do fenômeno com uma enfiada de livros? A revolução é o que ainda não está escrito. Nós, chamados de terroristas pela ditadura, como se falássemos para 2016 o que sentimos em 1972, poderíamos gritar:
– Parem todas as bombas e tiros contra o sonho!
Depois falaríamos como falamos nesta noite no bar da Encruzilhada, enquanto a wurlitzer em alto som nos protege da delação:
– Vocês já pensaram no mundo extraordinário que podemos construir? – Zacarelli pergunta.
– Podemos? Nós já estamos construindo – Alberto fala com a mais absoluta certeza.
– Eu penso em tanta coisa absurda, que nem é bom falar – me escapa.
– Fala, fala e deixa falar – Narinha pela primeira vez, que eu guardo lembrança, intervém.
– É …. – quero falar e me acanho. Mas continuo: – Eu acho que o mundo melhor são crianças correndo entre borboletas, de manhã cedinho num dia de sol. E homens também, brincando no tobogã. Todo o mundo. Uma sociedade em que todos tenham direito de voltar a ser crianças.
E me calo, e penso em jogar mais ficha na wurlitzer, para que ela cante canções mais conformes ao pensamento.
– Já eu… – Narinha fala rindo – já eu quero um mundo cercado de bossa-nova. Acho assim: as crianças correm entre as borboletas num parque. Mas cada árvore é um violão. E quando nos encostamos nelas vêm sons, Chega de Saudade, O amor, o sorriso e a flor. E assim vai.
– Tocando, tocando – Zacarelli fala. – Era bom. Mas falando sério…
– Eu estou falando sério – Narinha o interrompe.
– ..Certo, certo. Eu quis dizer: falando sério de outra maneira.
– Narinha é muito poética – fala Alberto. – Mas nós queremos é a mudança de estrutura. O poder para o proletariado, Narinha.
– Você acha que é mais fácil que as árvores cantarem bossa-nova? – Narinha pergunta.
– É claro que não – responde Alberto. – Se fosse fácil, a revolução já estava feita, Narinha.
– Então deixe as árvores cantando bossa-nova.
– De acordo – Zacarelli fala. – Nós queremos um mundo em que as árvores cantem um concerto de bossa-nova. – Todos riem. Zacarelli volta: – O que é que tem? Sonhar é livre. Como o homem não é um pássaro, ele criou um avião, entende? Se as árvores não cantam, nós cantamos por elas. Mas falando do concreto – e pôs a mão sobre a outra como se mostrasse um copo de plástico desmontável na infância. – Do concreto mesmo..
– A revolução é o concreto . Alberto fala.
– Isso, a revolução. O conceito do concreto… – E Zacarelli procura palavras, que não vêm, e só não há um silêncio porque a wurlitzer toca Alone Again. Ele para e continua: – A revolução, isso. Nós temos tarefas práticas a cumprir, entende? Práticas. Agitação no meio do povo, denunciar os crimes da ditadura, ganhar as ruas e levantar os oprimidos para a insurreição.
– Mas não só a massa mais popular. A pequena burguesia no Brasil é uma classe revolucionária – Alberto fala.
– A pequena burguesia, Alberto? – pergunto.
– Está em nossos documentos – ele responde.
– O que está dentro do escrito de Mao sobre a contradição – Zacarelli fala. – Mas só as tarefas práticas difíceis.
– Eu não quero falar de tarefas práticas! Pelo menos hoje, não – Narinha fala com sinais de embriaguez, mas como dizê-lo?, com uma lucidez clara na exposição da vontade.
– Ela é assim – Alberto intervém benevolente. – O que você quer que a gente fale, Narinha?
– Vamos falar do futuro – ela responde. – Do futuro de nós.
– O futuro é o socialismo – Alberto fala.
– Isso mesmo – continua Zacarelli. – O mundo do futuro é o socialismo. Isso é uma lei. Isso é feito a lei da gravidade. O capitalismo cai. Não tem como escapar.
– Então esse futuro não precisa de nós – o álcool me ajuda a dizer. – Esse futuro virá sem nós. Basta acompanhar a lei de Isaac Newton.
– Que é isso, você é louco? – Zacarelli me pergunta. – Nós não somos objetos fixos, parados sob o peso da lei, presos. Que é isso?
– Sim, mas não importa o que a gente faça – respondo. – Se é lei, o mundo nem precisa de nós.
– Meu Deus do céu – Zacarelli volta. – Nas ciências sociais, a lei é uma tarefa dos homens. Sem nós só haverá um deserto.
– Então a lei da gravidade somos nós. Ela só existe se nós agirmos – digo.
– Isso. A lei somos nós. Ela não está escrita antes. Somos nós que fazemos a lei.
– Um brinde para nós! – Narinha fala. – Primeira bateria, segunda bateria, já virou…. – Entornamos os copos.
– Ao mundo que desejamos – Alberto propõe.
E levantamos os copos descortinando as cidades do futuro. Então toca Yellow submarine. E começamos a bater na mesa e a gritar we all live in a yellow submarine, yellow submarine. É impossível o controle sobre nossos corações. No intervalo da ficha da vitrola, falamos com uma embriaguez de vozes e chamas.
– Ao mundo em que brincaremos como as crianças de todas as raças, de todas as cores. Todos seremos irmãos entre borboletas.
*Trecho do romance “A mais longa duração da juventude”