Os serviços de Marina Silva

Nos anos 90, a direita dispunha de um programa para o Brasil: o programa neoliberal. Beneficiária da atmosfera regressiva criada pela queda do Muro de Berlin e dissolução da União Soviética, no curso de uma ampla crise do socialismo e de um notável avanço do capital, ela sensibilizou o eleitorado brasileiro com suas propostas aparentemente inovadoras de privatizações, Estado mínimo e outros quejandos.

E indicou para representá-la um egresso da esquerda, o então senador Fernando Henrique Cardoso, que cumpriu dois mandatos presidenciais. Digamos assim: a direita estava com tudo.

Mas o modelo neoliberal sofreu reveses decisivos no Brasil e no mundo. A partir de 2003 o Governo Lula inaugurou um novo modelo que, a despeito de equívocos e limitações, confrontou-se com o receituário neoliberal, vitaminou o crescimento econômico com justiça social e soberania nacional e, assim, ganhou a alma da maioria dos brasileiros. A Presidente Dilma se elegeu no bojo desse movimento para a esquerda. E a direita ficou sem programa e, portanto, órfã de propostas para o Brasil. Nos últimos anos, amparada em seu vasto poderio midiático, restou-lhe atacar o governo a partir do velho cantochão do moralismo e de pontos isolados que estão longe de se constituírem uma alternativa à plataforma da esquerda.

Mas isto não basta para a direita vislumbrar alguma perspectiva, que não a derrota, nas eleições de 201. Assim, procura construir ou ajudar a construir cenários adicionais que, mesmo indiretamente, a favoreçam. Um desses cenários é o da fragmentação do quadro partidário e de alianças eleitorais, na esperança de evitar a vitória da Presidente Dilma já no primeiro turno, como apontam as pesquisas. Daí a grande mídia privada e mesmo próceres da direita saudarem o lançamento, no dia 16 de fevereiro, em Brasília, do partido da ex-senadora Marina Silva, a tal Rede Sustentabilidade, ou simplesmente Rede.

Marina não dispõe mais dos 20 milhões de votos que auferiu em 2010 em circunstâncias políticas irrepetíveis. Mas seu capital eleitoral – ali pelos 9%, segundo estimam pesquisas atuais – ainda é respeitável. A direita conta com eles para tentar impedir a vitória de Dilma já no primeiro turno. E se esforça para isso, inclusive oferecendo quadros ao novo partido. O deputado federal paulista Walter Feldman, por exemplo, um tucano histórico e sempre muito bem votado, é apontado como um dos fundadores da agremiação de Marina. Claro que não será fácil amealhar, até outubro, as 500 mil adesões necessárias para legalizar o partido, mas a direita certamente vai ajudar.

Mas o partido da ex-senadora pelo Acre, além dos serviços que prestará à direita, ainda que indiretamente, contém singularidades que não passaram desapercebidas. A primeira, nas palavras da própria Marina: "Estamos na época ao paradoxo, nem situação, nem oposição a Dilma. Precisamos de posição”. Nem oposição, nem situação, mas posição? O que é isso? Parece tiradinha de publicitário. E mais: “Nem direita, nem esquerda. Estamos à frente". Mas onde está o partido, em que galáxia? Isso me cheira à senha para o oportunismo, pois numa agremiação que assim se define, cabe todo mundo. Também a afirmação de Marina de que o Rede vai romper com “a lógica de partidos a serviços de pessoas” soa como embuste. Não está a serviço de pessoas, mas só ela é quem aparece.

Não vai o partido de Marina aceitar contribuições de empresas de cigarro, armas, agrotóxicas e bebidas alcoólicas. Mas nada fala a respeito das doações de bancos e empreiteiras. Uns, como o deputado Walter Feldman, falam que a agremiação só aceitará dirigentes e candidatos com ficha limpa, regra que não vale para filiados em geral. Outros, como um dos fundadores, João Paulo Capobianco, asseguram que a legenda vai "coibir a entrada de ficha suja". Ingressa ficha suja ou não? A confusão está precocemente formada, o que não soa estranho a um partido que não possui carta programática, no qual metade dos filiados poderá ter a opinião que desejar, à margem das orientações partidárias.

Tais orientações foram coletadas entre os primeiros aderentes. No evento de lançamento, em Brasília, os participantes – alguns deles se denominam “sonháticos” – relataram sonhos ao microfone ou por escrito. Como notou, em artigo recente, o biólogo e professor Pedro Luiz Teixeira de Camargo, “as ideias eram as mais divergentes possíveis, passando pelo mote ‘mais Joaquim Barbosa, por favor’, até a palavra mágica "amor". Para ele, “a partir do momento em que metade dos filiados não precisa seguir um programa partidário, busca-se o enfraquecimento dos partidos políticos”. E aí está um ponto crucial nessa iniciativa, a primeira que busca desclassificar a instituição partido como instrumento primordial da política. Diz Marina: . "Estamos num processo de desconstrução de que o partido tem monopólio da política, queremos quebrar isso”. É a ação declarada contra os partidos, a tentativa de despolitização da sociedade.

Em seu oportuno artigo, Pedro Luiz Teixeira de Camargo conclui:

“É fundamental mostrar a toda a sociedade a verdadeira faceta de Marina Silva e de sua Rede: servir de legenda para deputados insatisfeitos em seus partidos, garantir um partido para a realização pessoal da ex-senadora e, principalmente: servir de sublegenda para a direita neoliberal. Desgastada devido aos bons governos de Lula e Dilma, a direita tradicional precisa se repaginar, e nada melhor que usar uma ex-militante de esquerda, ainda mais se puderem pintar o tucano de verde, que pode deixar de ser a cor da esperança para passar a ser a cor da preocupação”.

Gelatinoso como é, o partido da ex-senadora mereceu definição antológica do jornalista Cláudio Gonzalez: “Não é um partido, é uma ONG que receberá dinheiro do fundo partidário”. Ou, como afirmou o impagável José Simão, dia desses: a Rede de Marina “é o PSD que não come carne”.

As opiniões expostas neste artigo não refletem necessariamente a opinião do Portal Vermelho
Autor