Com sutileza, o cineasta japonês Hirokazu Kore-Ueda (“Ninguém Pode Saber”, 2004) faz ácida crítica a pilares da estrutura sócio-político-econômica de seu país. A partir das explícitas divisões de classes, do trabalho obsessivo e da relação quase servil à empresa, ele estrutura este “Pais e Filhos” com o mesmo rigor do arquiteto Ryoata Nonomiya (Masaharu Fukuyama). Tudo na vida deste tem espaço rigidamente definido: da companheira Midori Nonomiya (Machiko Ono) aos móveis e ao filho Keita (Keita Nonomyia), de seis anos. Em seu apartamento não se vê objetos defeituosos e todo móvel está no lugar
A própria imagem de Ryoata, trajando ternos de grife, reflete esta arrumação. Tudo, em princípio, está em harmonia, mas Kore-Ueda revela o quanto a desigualdade de classe gera insatisfações. Estas desmontam as posições familiares e de trabalho estratificadas por Ryoata. E, portanto, seu papel na própria estrutura de classe japonesa. Seu contraponto é o pequeno comerciante Yudai Saiki (Rirî Furankê), que dele, Ryoata, difere em tudo, inclusive na forma como une família e negócios, sem privilegiar os últimos.
Yudai divide com a companheira Yukari Saiki (Yoko Maki) e os três filhos pequenos o espaço que é, ao mesmo tempo, residência e loja de material elétrico. Peças e móveis atulham exíguos espaços. Seu visual é de um “proletário”, de camisa florida e cabelos revoltos. Kore-Ueda estabelece, assim, uma clara diferença de classes entre eles, o bastante para fixar comportamento, ética e moral de ambos. Mas o que desencadeia o encontro deles são duas crianças, Keita e Ryusei Saiki (Chôgen Hwang), pelas quais terão de optar, devido a questões de paternidade por eles ignoradas.
Para Ryoata, dinheiro é tudo
No entanto, o tema central do filme é a cega jornada de Ryoata pelas carcomidas estruturas que o educaram. E nada valem agora, diante de um caso que exige dele um arcabouço ético, moral e humanístico que não tem. Suas concepções são centradas nas facilidades que o dinheiro cria, ainda que humilhe e fira a dignidade do outro. A sequência em que ele tenta subornar Yudai reforça esta visão. A resposta dada por este o desmente, devido à defesa de seus preceitos, diante do arrogante e desmedido Ryoata.
Daí surge a velha e pertinente discussão sobre paternidade: pai é o biológico ou quem adota a criança. O interesse da criança é superior aos dos pais biológicos ou adotivos em conflito? Ela pode optar, caso tenha se apegado, independente inclusive da lei, por uns ou por outros? Keita e Ryusei enfrentam esta questão, por diferentes ângulos, devido ao bom tratamento que lhes é dado por Yudai, revelando assim a incapacidade de Ryoata de mudar suas concepções e romper sua dura carcaça de estrela da arquitetura.
O tratamento aparentemente anárquico de Yudai atende às expectativas das duas crianças. Elas participam de brincadeiras, são envolvidas no movimento da loja e tratadas com carinho. Com Ryoata, elas têm apenas tarefas a cumprir. Dentre elas, estudar, jantar com os pais e dormir. Lazer só na época de férias. Convivem mais com a mãe, pouco interagindo com o pai. São mais uma peça na engrenagem patriarcal, cujo objeto é status quo.
Ryoata não entende as relações sociais
Quando é confrontado, enfim, por Yudai, Ryoata mostra-se incompetente para atender suas próprias necessidades, como ser social. E ainda mais: ele não entende as contradições da estrutura de classe do país e as variantes das relações humanas, do companheirismo e da amizade. Os conflitos entre ele e Yudai são ditados pela posição ocupada por ele na sociedade japonesa e pela forma como estruturou sua vida. Entretanto, seus interesses não atendem nem os das crianças, nem os de Yudai. Então, sua jornada perde o sentido.
A forma usada por Kore-Ueda para explicitá-lo é a multiplicidade de visões dos personagens. As de Ryoata e Yudai e as de Keita e Ryusei. As mulheres Midori e Yukari pouco interferem na ação. Às vezes exercem o papel de equilíbrio, mas é só. O que conta aqui é a jornada de Ryoata e as fraturas da alta média japonesa, presa a seus rituais e interesses. Kore-Ueda critica-a, através Ryusei, por viver em apartamentos que mais parecem hotéis, dada à padronização que os levam a serem os mesmos em qualquer país.
Em dadas sequências, Kore-Ueda renova a abordagem da família japonesa, feita por Yasujiro Ozu (1903/1963) em seus filmes (“Bom Dia”, 1959). As relações familiares tornaram-se mais complexas. Ele mostra-as com delicadeza, fluidez e ações paralelas, contrapondo-se umas às outras com variações de ângulos de câmera e leveza. É como se os próprios pais tivessem de reestruturar seus conceitos e se tornarem abertos às novas realidades, criando relações fora dos padrões prevalecentes. Um belo filme.
“Pais e Filhos”. (“Soshite chichi ni naru”). Drama. Japão. 2013. 121 minutos. Fotografia: Mikiya Takimoto. Roteiro/edição/direção: Hirokazu Kore-Eda. Elenco: Masaharu Fukuyama, Machiko Ono, Rirî Furankî, Maki Yoko, Shôgen Hwangm Keita Ninomiya.
(*) Prêmio do Juri, Festival de Cannes 2013.
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