Partido Comunista do Brasil em 1968 (2)

À Helenira Resende e Antônio Ribas

Pela Unidade na UNE


 


 


Em 1968 agravou-se, no interior do movimento estudantil, a disputa entre os militantes da Ação Popular (AP) e os das dissidências pecebistas. No 29º Congresso da UNE, realizado clandestinamente num convento de Vinhedo (SP) em 1967, a AP havia garantido a presidência da entidade para Luís Travassos. Contudo, a votação foi apertada e a vitória foi decidida por pouquíssimos votos. A necessidade política de enfrentamento com o regime, conduziu que a diretoria fosse composta pelos membros dos principais tendências participantes. Assim, a direção da UNE foi integrada por quatro estudantes da AP, três da Política Operária (POLOP) – já em processo de cisão – e três das chamadas dissidências. Nesta composição, a AP perdeu a maioria que tinha no interior da entidade. Os demais grupos unificados poderiam derrotá-la nas votações.


 


No Congresso de Vinhedo, o PCdoB resolveu se abster da votação. Os seus poucos delegados não haviam conseguido obter uma posição unificada em torno da aliança a ser estabelecida. Uma parte defendia unidade com a AP e outra – dos elementos que dariam origem a Ala Vermelha – propugnava frente-única com as dissidências. A abstenção foi duramente criticada pela direção nacional do Partido, que já defendia uma aliança preferencial com a AP.


 


Em alguns momentos, a disputa acirrada entre tendências ameaçou dividir o movimento estudantil ao meio. No Estado de São Paulo, ainda em 1967, surgiram duas UEEs – uma presidida por Catarina Melloni (AP) e outra por José Dirceu (dissidência). Às vésperas do Congresso de Ibiúna existia o perigo real de surgir duas UNEs.


 


Segundo Luís Raul Machado, ex-diretor da UNE pela AP, “chegou-se a um ponto crítico no período anterior a preparação do congresso de 1968. O presidente da UNE convocou um conselho nacional que não contou com a aprovação de cinco ou seis membros da diretoria. Esses (…) não compareceram ao conselho que se realizou em São Carlos (SP) e que ficou sem validade em termos de decisão sobre o congresso, por ter se transformado numa reunião da tendência ‘travassista’. Novo conselho foi realizado em Salvador. Nesse período chegou-se a falar em ‘duas UNEs’ tal era o grau de divergência interna no movimento estudantil”. Em Salvador decidiu-se, contra o voto da AP, pela realização do congresso estudantil clandestino em São Paulo. Dizem que a diferença foi de apenas de um ou dois votos.


 



Diante da ameaça de divisão iminente, o PCdoB criou o Movimento de Unidade e Ação (MUA) cujo principal objetivo era defender a coesão dos estudantes em torno de suas organizações. As jovens lideranças comunistas, especialmente do Ceará, foram enviadas aos vários estados da federação para defender essa proposta.
Sobre este movimento declarou Carlos Augusto Patinhas: “No começo de 1968, com a divisão da UEE de São Paulo, o PCdoB lançou nacionalmente o Movimento de Unidade e Ação que defendia o respeito às decisões majoritárias das instâncias do Movimento Estudantil. Este movimento de defesa da unidade e de combate às tentativas de divisão foi lançado através de manifesto e lido por João de Paula numa assembléia estudantil na USP (…) e a partir daí o Partido passou a crescer em vários estados”.


 


Esta é mesma avaliação de Ronald Rocha, ex-diretor da UNE. O MUA, para ele, era “uma política e uma forma de abordagem pautada pela proposta de unidade diante da escalada do sectarismo e da ameaça de divisão em 1968, especialmente no movimento estudantil paulista. Dessa maneira, o PCdoB ganhou autoridade, estabeleceu novos contatos e acumulou força. De fato, foi uma política nacional, expressa num texto redigido pela Comissão Executiva do Comitê Central, mas assinado por militantes cearenses”. Possivelmente por trás desta proposta estivesse Diógenes Arruda, responsável pelo trabalho de juventude junto ao secretariado nacional do PCdoB em 1968. Um pouco mais tarde, a tarefa de acompanhamento do movimento estudantil seria delegada ao cearense Ozéas Duarte. 


 


Em maio, após as grandes manifestações contra o assassinato de Edson Luís, o Comitê Central do PCdoB aprovou o documento “A política estudantil do Partido Comunista do Brasil”. Era uma tentativa de unificar a ação dos estudantes comunistas e apresentar uma alternativa para o movimento. Ela teve como principal referência política as resoluções da VI Conferência Nacional (1966) e o documento “O Partido Comunista na luta contra a ditadura militar”, aprovado em novembro de 1967.


 


A resolução de maio propunha que os dirigentes estudantis concentrassem “o fogo dos ataques na camarilha militar reacionária e entreguista e nos imperialistas ianques” e levassem “as massas estudantis a lutar pela derrubada da ditadura e por um poder popular”. Continuava: “É necessário que as grandes massas de estudantes participem das lutas pelas reivindicações específicas e das ações políticas em defesa dos objetivos democráticos e patrióticos (…) Tais fatores constantes de mobilização dos estudantes, são inseparáveis do combate à ditadura (…) Se as reivindicações específicas servem de motivo justo e permanente às lutas dos estudantes – e devem merecer especial atenção dos comunistas – as questões políticas, em muitas circunstâncias, são as determinantes da mobilização das massas estudantis e da realização de grandiosas manifestações”.


 


O PCdoB se posicionou contra a proposta de diálogo com o regime que vinha sendo defendida por alguns setores da oposição, inclusive no interior do movimento estudantil: “Não há cabimento para o diálogo entre estudantes, privados dos mais elementares direitos e liberdades, e os fâmulos da ditadura. Para os atuais governantes, o diálogo não passa de manobra para ludibriar a opinião pública e de uma tentativa de fazer os estudantes aceitar o sistema instituído com o golpe de 1º de abril”.


 


Durante o processo de construção do 30º Congresso da UNE estreitaram-se os laços políticos entre o PCdoB e a AP. As duas organizações colocavam a tônica de seu programa nas bandeiras políticas gerais de luta contra a ditadura e o imperialismo estadunidense. Defendiam que o movimento estudantil deveria manter a mobilização de rua. Ambas as correntes eram contrárias a qualquer tipo de diálogo com o governo do general Costa e Silva.


 


As dissidências, pelo contrário, defendiam concentrar a atividade do movimento estudantil nas lutas específicas e o recuo das ruas para dentro das universidades. Após a passeata dos 100 mil advogaram a participação do processo de diálogo com o regime, visando desmascará-lo. Chegou a ser formada uma comissão de representantes da “sociedade civil”, incluindo membros da dissidência, que foi recebida pelo general-presidente. O  PCdoB e a AP não participaram da comitiva.
Além de alguns aspectos da tática revolucionária, aproximavam as duas correntes o vínculo político e ideológico com a China socialista, as idéias de Mao Tse-tung e as críticas que eles faziam ao chamado revisionismo soviético. As duas organizações combatiam o “foquismo” e defendiam a “guerra popular” como meio privilegiado para colocar um fim à ditadura militar e conquistar um novo regime social. 


 


Apesar da unidade que ia se estabelecendo no movimento estudantil, havia ainda alguns pontos divergentes. O PCdoB era menos radical quanto a distinção entre organização e mobilização. Esta, para os comunistas, era uma falsa dicotomia. Enquanto nas ruas o pessoal do PCB gritava “só o povo organizado derruba a ditadura” e o pessoal das dissidências e parte da AP gritava “só o povo armado derruba a ditadura”, o PCdoB lançava um panfleto que dizia “só o povo organizado e armado derruba a ditadura”.


 


Contou-nos o ex-dirigente estudantil Augusto Petta, que numa das assembléias realizadas em São Paulo, enquanto dirigentes das duas principais tendências se digladiavam em torno do que seria mais importante, mobilizar ou organizar, uma jovem negra se levantou, e para espanto geral, disse que as duas teses estavam erradas. Para ela, haveria uma relação dialética entre organização e mobilização. Era preciso mobilizar para organizar e organizar para mobilizar. A jovem líder estudantil chamava-se Helenira Resende e seria eleita no ano seguinte para uma das vice-presidências da UNE.


 


Sobre o debate em torno de onde deveria se realizar o 30º Congresso da UNE, Ronald Rocha afirmou: “no segundo semestre de 1968, a AP e o PCdoB propuseram um congresso sustentado e protegido pela mobilização de massas. O PCdoB defendia o CRUSP – no campus da USP – como o melhor local. Dezenas de milhares de estudantes de um movimento no auge, em ampla atividade político-cultural, impediriam a repressão seletiva sobre os delegados (…) Todavia, o Conselho Nacional da UNE aprovou a proposta de realizar o congresso clandestinamente por exígua maioria de votos. Esta decisão esteve na origem da queda de Ibiúna, que quase desorganizou completamente o movimento”. A escolha do lugar não era um problema menor, ela estava ligada diretamente à concepção revolucionária partilhada pelas lideranças estudantis. 


 


Apenas alguns meses antes do fatídico congresso, o PCdoB passou a ter uma efetiva articulação nacional no movimento estudantil. Ronald disse que isso teria acontecido “a partir de uma reunião em São Paulo, com a assistência de Diógenes Arruda, na qual camaradas com funções dirigentes no movimento estudantil do Rio de Janeiro, São Paulo e Ceará se encontraram pela primeira vez”. Era, possivelmente, um dos primeiros ativos nacionais estudantil do PCdoB.


 


Tendo por referência uma proposta de texto, elaborada pelo Comitê Central, realizou-se um intenso debate. “Os camaradas do Ceará, continuou Ronald, insistiram em valorizar as reivindicações específicas, que julgavam estar subestimadas (no documento-base). Os militantes do Rio de Janeiro, envolvidos em intensa disputa pelos rumos do movimento estudantil carioca, propuseram a inserção de críticas às visões que centravam na busca de modelos alternativos de universidade, seja conciliando com as políticas governamentais e caindo no reformismo, seja professando certo dogmatismo ‘alternativista’ que copiava o maio de 68 francês”.


 


Assim, nasceu a “Contribuição ao 30º Congresso da UNE: Combate intransigente a ditadura e ao imperialismo ianque”, assinada por Ronald Rocha (RJ), João de Paula (CE) e Nair Kobashi (SP). Para os dirigentes estudantis comunistas a UNE deveria ter como atividade central “a luta contra a ditadura militar e contra os colonialistas da América do Norte”. Para eles, “colocar esta luta como questão secundária ou de maneira indireta seria um grave erro. Não corresponderia ao sentimento dos estudantes, ao movimento real que se processa nas escolas e nas ruas”. Continuava o documento: “Temos que prosseguir nas lutas específicas. Mas a tarefa principal do movimento estudantil é lutar contra a ditadura e a ingerência norte-americana em nosso país”.


 


No Congresso de Ibiúna a representação do PCdoB havia crescido muito, especialmente se comparada àquela que participou no congresso anterior. Contudo, as bancadas da AP e das dissidências continuavam sendo maiores. “A delegação do PCdoB vinha, basicamente, do Ceará, do Rio de Janeiro e da Bahia. Havia também alguns estudantes de São Paulo, do Rio Grande do Sul, de Minas Gerais e do Espírito Santo, mas poucos (…) Os (líderes estudantis comunistas) mais notórios, por dirigirem entidades respeitadas e terem sido destacados para articulações nacionais, eram Genoino e João de Paula, do Ceará; eu (Ronald), do Rio de Janeiro; e Helenira, de São Paulo”.



Possivelmente, a aliança firmada com o PCdoB desse a AP a maioria dos votos e garantiria, novamente, a eleição de seu candidato à presidência. No entanto, antes que isso pudesse ocorrer, o congresso foi desbaratado pelos órgãos de repressão e centenas de delegados foram presos. Os debates tiveram que continuar na prisão. José Dirceu, Vladimir Palmeira e Luís Travassos ficariam presos até serem trocados pelo embaixador dos Estados Unidos em setembro de 1969. O único que cumpriria a pena seria o pecedobista – e ex-presidente da UPES – Antônio Ribas. Este sairia da prisão apenas em 1970 e logo se integraria às forças guerrilheiras do Araguaia.  


 


Visando reorganizar a UNE, em novembro de 1968, realizou-se um Conselho Nacional onde se decidiu que não ocorreria um novo congresso e sim reuniões descentralizadas por estados. Nelas se aprovariam as teses e se indicariam os nomes para a nova diretoria. A maior parte desse processo realizou-se debaixo do AI-5 e do recrudescimento da repressão política. Apesar disso, apenas a plenária do Paraná caiu nas mãos da polícia. A queda ocorreu em fevereiro de 1969 e entre os presos estava um dos principais expoentes do PCdoB no movimento estudantil, o cearense João de Paula. 


 


Os resultados das plenárias estaduais foram homologados num novo Conselho Nacional, ocorrido no Rio de Janeiro em abril de 1969. Na ocasião foi eleito para a presidência da entidade Jean Marc von der Weid, representante da AP. Segundo o próprio Jean Marc, a votação foi apertada: chapa da AP/PCdoB ficou, aproximadamente, entre 350 e 355 votos, a das dissidências com 340/345, a do PCBR presidida por  Marcos Medeiros, com 25/30. Entre 25/30 estudantes votaram em branco. Estes votos provinham da Frente Universitária Progressista (FUP), vinculada ao PCB.


 


Pela primeira vez, desde a reorganização em 1962, o PCdoB elegeria seus militantes para compor a diretoria da UNE. Eram eles João de Paula (CE), Helenira Resende (SP) e Ronald Rocha (RJ). Como João de Paula havia sido preso, acabou sendo substituído pelo seu camarada cearense José Genoino. Tanto Patinhas como Ronald Rocha, confirmaram a existência de um quarto nome: o do estudante baiano Aurélio Miguel. Mais provavelmente este tenha vindo substituir Genoino ou Helenira quando eles foram deslocados para o campo.


 


Assim, uma das novidades deste período foi o rápido crescimento do PCdoB no movimento estudantil brasileiro. Uma tendência que foi mantida nos anos que se seguiriam. Ronald Rocha afirmou que, em 1971, “foi realizado o 31º Congresso da UNE, novamente com base em fóruns descentralizados regionalmente”. Neste conclave “o PCdoB superou a AP em número de delegados” e Ronald foi indicado para a Presidência da entidade. Mas, “pelo acordo político, a AP ficou com o cargo, pleiteando a continuidade de Honestino Guimarães – que havia substituído Jean Marc após sua segunda prisão – e o PCdoB ficou com a maioria dos diretores”. A integração da maioria da AP ao PCdoB, ocorrida entre 1972 e 1973, consolidaria a hegemonia deste partido no movimento estudantil por um longo período.


 


O crescimento do PCdoB se deveu aos acertos táticos – especialmente a defesa da unidade do movimento estudantil e das forças democráticas e populares -, mas, também, foi o fruto da opção feita pelos militantes estudantis das dissidências comunistas. A maioria desses jovens revolucionários abandonou suas funções no movimento estudantil e se integrou aos grupos táticos armados da ANL, MR-8, VPR e PCBR.


 


Esse mesmo processo – ainda que em menor escala – veio a ocorrer no PCdoB. Pouco tempo depois, João de Paula, Helenira Resende, José Genoíno e Antônio Ribas renunciariam aos seus cargos no movimento estudantil e partiriam para a montagem da guerrilha rural. Dezenas de militantes estudantis comunistas seguiriam pelo mesmo caminho. Uma grande parte deles combateria e morreria na Guerrilha do Araguaia (1972-1974). A história desses jovens heróis precisaria ser melhor conhecida pela novas gerações.


 


 


(Na próxima parte deste ensaio acompanharemos o debate sobre os caminhos da revolução brasileira, as relações do PCdoB  com outras organizações oposicionistas e com o movimento comunista internacional da época).


 


 


Referências:


 


 


Agradeço a entrevista exclusiva dada por Ronald Rocha, Dyneás Aguiar e Carlos Augusto Patinhas. O agradecimento se estende ao Jean Rodrigues que nos ceder as entrevistas feitas por ele com Ozéas Duarte e Celso Nespole Antunes. Estas se encontram depositadas no Arquivo Edgard Leuenroth do IFCH/Unicamp.


 


 


Coleção de jornal A Classe Operária de 1968 – Arquivo Edgar Leuenroth – IFCH/Unicamp.


 


Coelho, Maria Francisca Pinheiro – José Genoino: escolhas políticas, ed. Centauro, SP, 2007.


 


Freitas, Mariano – Nós, os estudantes, Edições livro técnico, Fortaleza, 2002.


 


Paraná, Denise – Entre o sonho e o poder: a trajetória da esquerda brasileira através das memórias de José Genoino, Geração Editorial, SP, 2006.


 


PCdoB – União dos Brasileiros para livrar o país da crise, da ditadura e da ameaça neo-colonialista” in A linha política revolucionária do Partido Comunista do Brasil (M-L), Ed. Maria da Fonte, Lisboa, 1974.


 


PCdoB – “A política estudantil do Partido Comunista do Brasil” in Política e revolucionarização do Partido, ed. Maria da Fonte, Lisboa, 1977. 


 


Santos, Andréa Cristiana – Ação entre amigos: história da militância do PCdoB em Salvador (1965-1973), Dissertação de Mestrado de História Social, UFBA. 2004


 


Santos, Nilton – História da UNE – vol. 1, depoimentos de ex-dirigentes, Ed. Livramento, SP, 1980.


 


Documento Contribuição ao 30º Congresso da UNE: Combate intransigente a ditadura e ao imperialismo – assinado por Ronald Rocha, João de Paula Monteiro e Nair Kobashi. João de Paula Monteiro e Nair Kobashi.


 

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