Pelé, o rei.

Negro, descendente de escravos, se tornou o símbolo máximo de um esporte criado pela elite branca e inglesa para difundir as ideias da Revolução Industrial e do Capitalismo.

Em 2 de junho de 1965, a Seleção Brasileira goleou a Bélgica por 5 a 0 no Maracanã. Equipado com sua câmera Leica M3, o fotógrafo Alberto Ferreira registrou Pelé na sua tentativa de marcar um gol de bicicleta. O gol não veio nesse lance, mas a imagem tornou-se icônica.

Nasceu rei em um casebre de madeira, tal como o menino Jesus, em uma cidade que tinha 3 corações no nome. Tão pobre quanto o salvador, engraxava sapatos com o semblante de um menino e a  esperança e a responsabilidade de um homem. Não podia imaginar que também marcaria o seu tempo, o seu saber e o seu ofício com o antes e depois de si mesmo.

A dor de seu pai, ao ouvir o Brasil chorar, o fez prometer trazer uma Copa para ele. Não ganhou apenas um título, ganhou três, uma para cada coração do nome de sua origem.  Sua predestinação não era apenas a de resgatar a dilaceração do peito do homem que lhe deu a vida, mas de uma gente constantemente humilhada e ofendida e de um país que tentava se afirmar como existente perante o mundo. Mal sabia que em seu corpo em movimento carregaria toda a resistência de séculos de escravidão e que ele, por si só, devolveria a autoestima de um povo.

Negro, descendente de escravos, se tornou o símbolo máximo de um esporte criado pela elite branca e inglesa para difundir as ideias da Revolução Industrial e do Capitalismo. Quebrou as regras do jogo apolíneo, estático, rígido no tempo e no espaço, ultra organizado, regrado, dividido, higienizado, tal como a divisão social do trabalho que precisava ser exposta por meio de um jogo brando e institucionalizado na força física e no corpo branco.

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Ele aperfeiçoou, para além dos limites humanos, o jogo dionísiaco criado por corpos mutilados, oprimidos, ridicularizados de uma nação alçada à terceira categoria e fez desse jogo: o melhor, o vencedor, o desejado, o invejado e o extremo da poesia em um palco todo gramado. A bola que insistia em grudar no seu peito, amaciada como se fosse um carinho instante, o seu cabeceio em um salto tão maior que o dos outros, com os olhos abertos para direcionar o vento, o diferentes chapéus sem deixar a bola cair e  que só pisa no chão no fundo das redes, os dribles curtos e rápidos, o toque de calcanhar que desliza suavemente,   o convite para a tabela com as pernas do adversário, a trivela, o toque de três dedos, enfim, as raízes brilhantes que seus pés insistiam em plantar nos olhares e nas bocas abertas dos abismados, para que eles nunca mais o esquecessem!

Que se dignasse, os surpreendidos e todos os confusos de espírito, o seu nome para as galerias da imortalização da beleza. Os gênios transformam seu simples ofício em arte nunca alcançável para os meros mortais. E todas guerras naquele tempo pararam, os humilhados foram exaltados, os colonizados finalmente libertados, os árbitros expulsos para que o jogo seguisse infinitamente em sua presença.

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Embora fosse rei, sempre se comportou como um simples homem fora de campo. Humilde, não reclamava da comida, da roupa, do alojamento, e mesmo sendo rei, não queria ser tratado diferente dos outros. Era apenas um homem, mas quando saia do vestiário para um campo de futebol, se vestia de manto, cetro e coroa. Naquele momento, todos os jogadores da sua equipe e do rival eram seus súditos. Ele os subjugava apenas com seus olhos de onça negra que transmitia a excelência que calçava os seus pés.

Mil músicas o cantaram, mil poemas o aclamaram em deleite lírico e épico para que o futuro não deixasse nunca de o reverenciar, assim como se deve fazer aos heróis das odisseias.

Nas arquibancadas, a torcida virava a plateia pronta para venerá-lo e se enchiam de orgulho histórico ao testemunharem ao vivo e a cores, um simples homem tocar a bola como nenhum outro assim o fez. Ele devolvia o sentido de público para todas as gerais. Levava para o povo a arte do teatro, do drama, da ópera, da sinfonia, da orquestra, os grandes museus, as grandes pinturas e esculturas, os mais líricos poemas em sua glória, tudo sintetizado em seu corpo em movimento.

Cada gol que Pelé marcava, era visto como uma homenagem ao adversário e os seus torcedores se lisonjeavam pelo feito. Pelé era o único jogador que conseguia vencer as paixões dos aficionados, fazia os deixar seus clubes de lado, porque a cada tento contra, naturalmente a reação era se levantar, admirar e aplaudir o rei seja por 1 minuto, dois, três, quatro, cinco ou 10 minutos, todos de pé, felizes por serem espectadores do gênio e do artista. Mas ali não haveria derrotados, nem vencedores, apenas os escolhidos a se prostarem em sua face.

Quando se movia, o Sol parecia girar em torno da Terra, do mesmo jeito que ele fazia o planeta girar em torno da bola, enquanto a bola era toda dele, sua companheira, sua amiga, sua amante. Nasceram um para o outro, e só ele a entendia como nunca, tanto que quando parou de jogar, a bola continuou sonhando em reencontrá-lo copiosamente e em cada outro pé que a tocava, ela o procurava sem respostas. Talvez em outros gênios posteriores encontrem um pouco de sua luz, mas nunca com um esplendor máximo de um ser que ousou ser divino em toda sua mortalidade.

Enquanto isso, o jogo dionísiaco, o jogo bonito segue bailando pelos ares na imaginação do mundo todo, como um sopro de uma dança circular que abraça o vento, se veste de asas da alegria para mais que um tempo e canta a escrita dos pés nas linhas de um campo.

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