“Pelos Meus Olhos”: amar não é o bastante
No filme em que atores e cenário se complementam, diretor espanhol Icíar Bolláin mergulha nas relações amorosas de um casal cuja convivência traz mais ódio que paixão.
Publicado 03/10/2008 17:32
Numa bela cena de “Pelos Meus Olhos”, do espanhol Icíar Bolláin, Antonio (Luís Tosar) esbraveja contra a mulher Pilar (Laia Marull), por ela se entusiasmar com seu trabalho de guia de museu. Acusa-a de se excitar descrevendo a cena elaborada por Tiziano (1490/1576), em que o amante acaricia a amada. A libido se impõe, não porque Pilar assim o deseja, a forma como ele a trata é que a faz encontrarna descrição da obra renascentista uma saída para suas agruras. Os amantes, nus, sob uma árvore, ensejam a atração doentia que Antonio tem pela companheira, sem espelhar toda a verdade. Há muito do que ele diz, ao afirmar que ela atinge o orgasmo, mas a explicação é outra, porém. Pilar encontra no trabalho uma maneira de se afirmar como mulher, livre das correntes que o marido lhe impinge. E nisto se constitui a beleza do filme. Sem cair em intelectualismos, ele traduz os conflitos e os descaminhos da relação a dois e da posição, subalterna, da mulher, reduzida a bibelô de fim de noite pelo marido.
Enquanto Pilar reduzia sua vida a cuidar da casae do filho Juan, de oito anos, não encontrava com o que se identificar. No máximo explicava para o garoto as cenas das reproduções das obras renascentistas, publicadas em livros de arte. Conseguia, assim, elevar-se um pouco acima de sua subalternidade, sem trair seu conceito perante Antônio. Suspeitava que, se tivesse outros interesses senão a casa, o filho e ele, o marido, poderia ser repreendida. Não estando, nem por isto, livre de que ele o fizesse. Então, se trancava, fechando o livro tão logo ele chegasse. Uma espécie de Gata Borralheira, temendo ser descoberta. O tratamento que Antonio lhe dá, no entanto, é o que a fará se auto-liberar, numa estranha dialética das relações matrimoniais.
Pilar se submete aos maus tratos sem reagir
Antonio, obcecado, colérico, enxerga fantasmas por todos os cantos. Telefona para a mulher o dia todo. Não lhe dá trégua. Controla-a do momento que sai de casa, pela manhã, até quando regressa, sem lhe trazer carinho algum. Quando muito um atrapalhado afago ou uma conversa entrecortada, que ela teme responder para não irritá-lo. O marido funciona aqui como senhor feudal, a quem cabe ordenar o que a mulher deve ou não dizer, sentir ou não sentir, dispondo dela no momento que quiser. Pilar se submete a isto tudo, sem queixar-se, ainda que seu olhar triste, seu rosto contraído, assustado, diga o contrário. As seqüências se repetem, numa insistência do diretor para não deixar o espectador desconfiar que o filme poderá ir em outra direção, senão o de mostrar a repressão exercida por Antonio sobre Pilar.
A tensão constante nessa relação, porém, indica que algo irá explodir. Um deles não suportará a pressão. É como se Pilar que vive a se retrair, temendo ser esbofeteada, ou mirando-o receosa, evitasse a queda, enquanto percebe que afunda. O difícil para Icíar Bolláin é evitar que Antonio se transforme numa caricatura, um daqueles brutamontes que terminam com uma faca enfiada no estômago. Ou um ser brutal a quem o público detesta do princípio ao fim, pois assim a narrativa o exige. Ou ainda que a submissão de Pilar a deixasse numa posição subalterna tal que fosse vista como boba. Nem uma coisa, nem outra. Bolláin consegue torná-los multifacetados. Há em Pilar algo escondido, antevisto apenas quando ela folheia o livro de arte ou o descreve para o filho. Aquela é a verdadeira Pilar, sensível, inteligente, capaz de captar as nuances da obra de arte e da vida ao redor.
Marido repressor é doente, diz Balláin
Com Antonio ocorre o contrário. Bolláin desbasta suas várias camadas. Ele adora Pilar, às vezes consegue acariciá-la, fazendo-a sentir-se bem com ele – noutras a amedronta. E não consegue se controlar. Precisa submetê-la a maus tratos. Humilhá-la. E não permitir que ela se reerga, desnudando sua personalidade. Principalmente quando ela encontra uma forma de escapar àquele horror. Tudo o que ela quer é ter uma vida para além da que “vive”. Ele a escuta, a inquire, não a deixa responder. Mas existe ainda outra camada a ser desvendada. Esta só virá quando Pilar entrar em choque com Antonio. Antes as várias camadas irão se suceder até ele surgir por inteiro numa terapia de grupo. O marido repressor é um doente, nos diz Balláin. Um ser infantil, cujo brinquedo, depois de manipulado, precisa ser quebrado para revelar suas entranhas. Um comportamento não só dele, inúmeros outros homens vivem situações idênticas mundo afora. Um deles só se acalma quando bate na mulher, outro quando a companheira se recusa a satisfazer suas manias.
É como se ali, no amplo salão, estivessem vários maridos doentes – e eles, a exemplo de Antonio, necessitassem de tratamento. A dificuldade toda está em ver a mulher como ser humano, que pensa, age, tem desejos, anseios e quer levar uma vida a dois, independente do que faz, para ser uma pessoa plena. E Antonio não vê Pilar assim. Ao ouvir o que ela pretende fazer, ele retruca irritado, como se o anseio da mulher fosse tão só uma mania passageira. Pilar, no entanto, pretende ter vida própria. Independente das ameaças e da suspeita de Antonio de que ela não o aceita, devido à profissão mal remunerada que exerce. Nada disto é verdade. A forma doentia como ele a trata e a tentativa de ela buscar sua independência terminam por dividi-los. O contexto deste tratamento, no entanto, merece uma análise. Montador de geladeiras e, posteriormente, de armários embutidos, ele não tem profissão e, portanto, condições de ascender socialmente nos termos que o sistema lhe permite.
Setor de serviços oferece a Antonio poucas opções
Sua instabilidade vem não só de seu comportamento doentio, a precariedade de sobrevivência também o mutila para a relação amorosa. E não consegue ver na mulher uma aliada para escapar a esta situação. O setor de serviço não lhe oferece outro tipo de trabalho. Tem que se contentar com trabalhos secundários, esvaziados de conteúdo transformador. Ele não produz artefato, apenas monta-o. E Pilar também não irá escapar ao mesmo dilema. A cena em que ela lhe expõe seus planos; elucida as contradições por eles vividas. De um lado estão as imposições seculares de uma Espanha conservadora, machista; de outro a urgência da libertação de Pilar, enquanto mulher. Da mulher como impulsionadora da transformação, a partir do trabalho. Pilar quer escapar à condição subalterna, não se separando do companheiro. Pelo contrário, vê como saída para ambos a conquista de uma vaga de voluntária no museu que lhe abrirá uma porta para o emprego futuro. Uma forma progressista de Balláin ver a emancipação da mulher, na pequena Toledo, interior da Espanha, unindo sua mutação, via trabalho, à continuidade de sua relação amorosa com Antonio.
Enquanto o macho agoniza em suas contradições, a mulher se defronta com o dilema de se emancipar. A jaula onde está presa se encontra em constante penumbra. Pilar está sempre num canto, num espaço diminuto, o olhar assustado. Sussurra; o que irrita ainda mais o marido. Oscila entre o desejo e a repressão, que, dependendo do momento pode se mesclar um ao outro. Em dado momento, Antonio, incógnito, acompanha sua descrição da relação amorosa no afresco de Tiziano. Ela não se retrai diante das observações dos visitantes do museu, nem se desconecta do clima que pretende lhes transmitir. Sensualidade, entrega, êxtase se sucedem. Pilar é outra mulher. Está solta, segura, centrada, diferente da mulher retraída, amedrontada, ao estar diante de Antônio. Faz contraponto com o olhar intrigado do marido, escondido detrás dos visitantes. Balláin está sempre usando estes recursos. Os personagens estão sempre em um lugar, de onde se pode vê-los interagindo um com o outro, mesmo à distância.
Atores conseguem traduzir profundidade do conflito
É assim quando Pilar discute com a irmã Ana (Candela Peña), que não a quer de volta ao convívio com o cunhado. Ele está distante, espreitando-as. Ou quando a mãe chega de repente com o vestido de noiva que pertenceu a Pilar e tenta fazer Ana usá-lo em seu casamento. Toda uma carga de ressentimento emerge entre elas, com Pilar desfazendo-se do vestido, numa demonstração da presença incisiva de Antonio, do qual não consegue se desvencilhar. A ação, desta forma, permanece para além do quadro. O entorno ilustra a ação, sem que a narrativa precise a ele fazer referência. Diferente da maioria dos filmes de hoje – sempre a explicitar ações e intenções, sem deixar o espectador elucidar seus contextos (e por que não, seu subtexto). Mesmo quando cria certo suspense, o desfecho não corresponde ao por ele esperado. Principalmente na genial cena em que Antonio retira de Pilar qualquer confiança e esperança que ainda nele depositasse.
A forma com que Balláin dirigiu a cena, sem facilitar aos atores qualquer espaço para respirar, deixa o espectador atormentado. Eles se movimentam num diminuto quadro, com Pilar sendo humilhada, despida de qualquer auto-estima, tratada feito cadela, sem condições de reagir. Antonio a faz perder o equilíbrio, desmanchar-se diante dele aos prantos. Laia Marull torna-se um ser encurralado, com reações as mais descontroladas, diante de um Luís Tosar enfurecido, fora de si. Difícil não se aterrorizar com a capacidade de o ser humano causar tanto dano ao outro. Tudo em nome de um sentimento que só encontra esta forma de demonstrar o quanto deseja o ente querido. Difícil também não esquecer que iguais a Pilar existem milhares de outras mulheres sofrendo violência idêntica em seu cotidiano. Só uma direção de cena, com atores à altura poderia traduzir esta situação, de tal maneira que o espectador sinta o horror em sua plenitude e não consiga esquecer a cena, depois de deixar o cinema.
Sociedade condena cidadão à morte lenta
O mais intrigante na narrativa de “Pelos Meus Olhos” é a reação de Pilar à esta danação. Ela não vê solução na denúncia à polícia. Não reage aos berros. Aliás, nunca faz isto. É passiva, silenciosa. No entanto, tem um objetivo, e Antonio não vê que ao maltratá-la, terminará por levá-la a alcançá-lo. Justamente ela, que tenta unir trabalho e prazer. Enquanto ele projeta nela suas frustrações e a doença que o acomete, a ponto de não vê-la como aliada. A contar o que ele não cansa de lhe dizer: que Pilar não aceita-o como ele é; um simples trabalhador, mal pago e sem futuro -, ambos são vítimas de um sistema que os encurralam em suas carcomidas teias. Mais por parte dele, por não conseguir separar a tênue diferença social entre eles, transformando sua paixão numa disfunção econômica. Uma condenação, portanto, de uma sociedade que estrangula seus cidadãos e os condena a uma morte lenta em espaços diminutos onde montam armários que fazem o sonho de consumo de uns e a miséria de outros.
Talvez Pilar com objetivo menos palpável consiga se locomover no diminuto espaço que o sonho lhe reserva. O impasse, ela deixa para trás. Este permanece no olhar vazio de Antonio, parado à distância na varanda, enquanto a vê se afastar. Balláin ao mostrá-lo no mesmo quadro, traduz em imagens o contexto da punição do macho, sem transformar seu filme num ajuste de contas. Diante das causas por ele, Balláin, apresentadas, quando isto ocorrer será em outro nível. Pilar, ao contrário de Antonio, vê em Madri a alternativa que a pequena Toledo não lhe oferece. Enquanto Antonio, preso às amarras de classe, bloqueado por questões econômicas que não lhes permitem ver nelas parte de seu infortúnio, já que ignora a saída para além de seu círculo, não enxerga o impasse em que se meteu. E não consegue refletir sobre os conflitos interiores que seu psicanalista não conseguiu decifrar. Entretanto, Pilar vista dele se distanciando deixa no espectador a certeza de que conseguirá unificar as perspectivas de emancipação de gênero, de trabalho e de relação afetiva. Um sentimento adverso ao do século 21, centrado apenas no hedonismo e no consumismo puro e simples.
“Pelos Meus Olhos” (“Te Doy Mis Ojos). Espanha. Drama. 2003. 106 minutos. Roteiro: Icíar Bolláin/Alicia Luna. Direção: Icíar Bolláin. Elenco: Luís Tosar, Laia Marull, Candela Peña.
Vencedor de Sete Goyas, o prêmio máximo do cinema espanhol.