Poesia no mercado

A multidão ruidosa pôs-se a ruir com estrondo, tão logo se deu conta do choro no rosto de Chico Pedrosa. O velho Chico não está estrábico. Os olhos miúdos abrigam-se nos óculos de aros pretos, lentes fumaçadas. Forçam-no, as lentes, a apontar nos rostos, mirando-os para – pum! – detonar um verso tão telúrico quanto sua voz incauta feito cobra se arrastando na capoeira rala. Não está na capoeira,

Chico, inda que ajuizando a fortuna de sentar sozinho, à sombra de uma algaroba de galhos cheios; o sol tisnando a terra crua, o anu preto ciscando no seco. A fortuna de estar só, espreitando a descarga do calor, mune-o de musas; mais do que o estrondo de indiferença da multidão a seu choro lutuoso. Ao meio-dia, não pôde distinguir na lonjura da noite, uma estrela para urdir como a nova morada de outro poeta, morto na mesma manhã. Um vate velho como ele, com sombras nos versos para, no fim da estrofe, dar luz a impulsos.

No pátio do mercado, a multidão apatetou-se no riso próprio, porquanto nas mesas, o queijo poroso desatou em suores, os guisados luziram nas bolhas de gordura, os peixes com cheiro tisnado, juntaram-se à cor moribunda da pedinte cega. Chico Pedrosa tirou proveito da patetice, sequer enxugando a lágrima fina nos dois lados da face brejosa; lembrou-se da polpa sob a casca da algaroba, encharcou o ombro de Cida Pedrosa. O choro abundante promiscuiu-se com prazer na secura da pele da poetisa. Também ela quis chorar, mas já tinha no rosto o rogo pela vida do poeta vivo que perdera o consanguíneo de idade igual. Contentou-se, Cida Pedrosa, em dar-lhe à luz outro verso, segurando-o, deitando a face no ombro próximo de Chico. Todos viram, ninguém a viu se deixar emprenhar no tronco poético de Chico Pedrosa.

Assim, a promiscuidade barulhenta do sábado no Mercado da Boa Vista, deixou passar o estandarte retangular da poetisa Cida Pedrosa. Logo Cida, a confessional – quando nasci/os anjos da anunciação/não me disseram nada. – Agora, confessando a vocação para, do alto da tribuna, dizer-se tão tribuna quanto fora Adalgisa Cavalcanti. Não como deputada, como a comunista de Canhotinho. A do Bodocó anuncia-se de olho no microfone da Câmara de Vereadores do Recife, de pouca altura, junto ao povo; como a pequenez de seu corpo, de sua voz na densidade dos versos.

A despedida de Chico Pedrosa enche de energia os passos de Cida Pedrosa. O carro de som é empurrado por dois braços, tão igual à Caminhada Poética que abre sua campanha. Ao sair do mercado, o pouco ajuntamento de poetas chama a atenção de dois guardas municipais. Sem que lhes fosse pedido, interrompem o trânsito no início da rua que dá acesso ao mercado.

No Pátio de Santa Cruz, à igreja fechada pouco importa o pregão contra os preconceitos. O nome da poetisa candidata se deixa gritar entre o casario barroco. Ela pula para ter nas mãos um verso que voa. Não é de rezas, mas olha para a igreja ajuizando a força do monumento na preservação do casario do mesmo feitio, ainda de pé.

A rua do Aragão é familiar a jacarandás redondos, nas lojas de uma ponta a outra da rua. Os móveis são simétricos e acolhedores feito a voz cúmplice de Cida: gosto quando Milena fala/dos homens/que comeu durante a noite.

A tarde cobre-se de luz e penumbra para parir a noite. Na Praça Maciel Pinheiro, o espectro de Clarice Lispector sopra as vozes poéticas. Sentem-se, os poetas, legitimados no ofício de entrever uma luz no beco escuro onde Clarice morara. A rua da Imperatriz, quase morta àquela altura, acanha-se nos olhos inquiridores de vendedores de lojas. Não é o pregão do lucro que ouvem, tão comum a seus ouvidos afeitos ao som de moedas.

A avenida Conde da Boa Vista deixa-se cruzar pelos bardos. O movimento é tão pouco que parece dizer que Tudo vale a pena quando a alma não é pequena. Na margem do rio Capibaribe, a mansidão das águas acolhe-os fingindo-se de porto atrás da estátua de João Cabral de Melo Neto. O rosto negro de Samuca Santos, poeta, é tão luzidio quanto as águas.

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