Presley e Sangalo

Na semana passada foi comemorado o Dia da Consciência Negra. Nos programas comemorativos ficou claro que o movimento em defesa da igualdade racial no Brasil ganhou força e maturidade. Reconhece os avanços dos últimos anos, mas alerta que ainda há muito que fazer para que se possa comemorar o fim da discriminação.

É quase consenso que o Estatuto da Igualdade Racial, aprovado em julho de 2010, já é uma referência legal. A criação da Secretaria de Promoção da Igualdade Racial no plano federal é, também, forte avanço institucional. E há mudanças no tratamento dado à questão em outros campos da vida. Nas novelas da TV, por exemplo, negro não é mais só empregado doméstico.

A discriminação está longe, porém, de sumir do cotidiano da sociedade brasileira. O mesmo ocorre nos Estados Unidos, apesar de que, lá, o próprio presidente da República seja negro. A discriminação tem suas formas sutis de se manifestar, como demonstram exemplos históricos. Vejamos na área musical.

Os pioneiros do blues, estilo musical norte-americano que gerou o jazz, o rock e outras manias, eram negros e pobres dos estados do Sul, especialmente Mississipi, Tenesse e Louisiana. Desde Leadbelly, Blind Lemon e, depois, B.B. King e tantos outros.

Contudo, a gente conheceu esse veio musical pela voz de brancos, em particular, para a minha geração, pelo blues já transformado em rock, com pitadas de música “country”, nos oferecido por Elvis Presley.

Ele nasceu no Mississipi, cresceu em Memphis, Tenesee, e ia a Nova Orleães, na Louisiana, ali ao lado, para se juntar à negrada. Também era pobre, padecia para se locomover. E era um baita talento, ninguém duvida. Mas, diante de outros grandes talentos de então, quando a mídia resolveu investir no assunto, escolheu um branco.

O mesmo ocorre na Bahia, o berço do samba. O samba de roda do Recôncavo Baiano, das senzalas e refúgios de escravos foi levado para o Rio de Janeiro com a Capital, transferida ainda no período colonial. É por isso que as escolas de samba do Rio dão merecido valor à “ala das baianas” em seus desfiles.

A música da Bahia se renova com rapidez, com novas batidas, novos instrumentos, novos ritmos, que surgem nos buracos de Salvador ou redondezas. Normalmente, pela inspiração e pelas mãos de negros. Os Filhos de Ghandi, Olodum, Ilê e tantos outros blocos (alguns com mais de 5 mil figurantes) e os trios elétricos são a parte visível desse universo.

Mas, quando a grande mídia nacional resolveu investir na música baiana, o dito axé, projetou Daniela Mercury e depois, com mais intensidade, Ivete Sangalo. Duas brancas. Ambas muito talentosas, como centenas de negras que havia por lá, como Magareth Menezes, que só agora tem algum espaço.

Sangalo é de família bem de vida de Juazeiro, terra do ícone da “Bossa Nova” João Gilberto, às margens do rio São Francisco. Mas se projetou nas ruas de Salvador, com a negrada. Da mesma forma, as bandas de trios elétricos que mais se destacam nacionalmente são formadas por brancos.

Um texto de Gilberto Freyre, de 1922, fala das semelhanças entre Nova Orleães e o Brasil, mais propriamente o Pernambuco, sua terra. O jeito das pessoas, a musicalidade, o ar preguiçoso, tudo era muito parecido, segundo ele. O texto foi escrito após viagem de Freyre aos EUA.

Mas este é um quadro mais que atual. Quem anda por Nova Orleães a todo instante tem a sensação de estar vendo baianos falando inglês. O Bairro Francês, na cidade americana, é muito parecido com o Pelourinho, em Salvador.

Os meninos nas ruas sapateando por uns trocados, os rapazes e moças nos incontáveis bares, os barqueiros no Mississipi. É tudo muito parecido com a Bahia, como para Freyre se parecia com o Pernambuco, mas que, no final das contas, é parecido também com São Luiz, no Maranhão, e vários outros cantos do Brasil.

Isso explica o fato de São Luiz ser a capital do reggae no Brasil. A ligação é quase direta. Os sons e energias de Nova Orleães, passando pela Jamaica, vieram bater na costa maranhense. Há uma raiz mais profunda do que o movimento Rastafari, difundido mundo afora por Bob Marley.

O delta do Mississipi está de frente para o delta do Parnaíba, com o Caribe no caminho. O som de S. Luiz é caribenho, mas o som do Bairro Francês de Nova Orleães também é caribenho. E o som caribenho, em especial da Jamaica, é também maranhense, e é também da Louisiana.

As ondas de rádio que vinham da Jamaica, dotada de potentes transmissores lá implantados pelo colonizador inglês, eram mais ouvidas no Maranhão do que as emissoras brasileiras. Essa influência ajudou grandemente na formação de semelhanças.

É certo que, na Jamaica, foi um negro que se projetou na difusão da sua música. Mas não devemos nos esquecer de que Bob Marley morreu por decorrência de sequelas de atentado em que foi ferido a balas, como punição por suas músicas antiimperialistas e em favor da igualdade racial.

Nos três cantos das Américas, portanto, há muito a fazer. E tudo tem mais efeito com a criança, na escola.

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