Prisioneiros das aparências

Em seu filme, o diretor Todd Field analisa a classe média americana e mostra como ela é dominada pelas imagens e as aparências.

Na cidadezinha americana de Woodward Court um grupo de donas de casa passa grande parte de seu tempo com os filhos no parque. Entre uma conversa e outra, elas suspiram diante da passagem de Brad Adamson (Patrick Wilson) com o filho Aaron (Ty Simpkins). Ele fica no seu canto enquanto elas o observam. Nada demais, não fosse uma brincadeira que termina abrindo caminho para que uma delas, Sarah (Kate Winslet), estabeleça com ele uma relação amorosa, que irá mudar a vida de ambos. Com este simples enredo, o diretor Todd Field, analisa o comportamento da classe-média do interior do EUA, em seu filme “Pecados Íntimos”. Durante várias seqüências prevalece o cotidiano enfadonho de casais cujas relações perderam-se na repetição e na acomodação. Tanto que se chega a perguntar se a história seja mesmo isto, tal a modorra em que eles vivem.



Mas não há propriamente uma história em “Pecados Íntimos”. Há, sim, uma série de ocorrências ditadas pelas relações incompletas dos casais, que terminam por determinar rumos inesperados. Numa delas, Sarah se entedia, numa casa de amplos e confortáveis cômodos, enquanto aguarda o marido Richard Pierce (Gregg Edelman), executivo de uma empresa de informática. O que permite a Todd Field e a seu roteirista Tom Perrotta, autor do romance em que se baseia o filme, revelar o que está fazendo o casamento deles desmoronar. Fato que ocorre hoje em dezenas de escritórios ou em cômodos fechados, onde o “lazer” solitário proporcionado pela web garante mais prazer do que uma relação que caiu no lugar comum. E justifica, sem dúvida, as escapadas de Sarah.
            


Imagem assume caráter demoníaco
Do outro lado está Brad, com seu jeito de garotão, fracassado assumido, que passa suas tardes a ver skatistas em manobras arriscadas, quando não está com o filho Aaron. Sua mulher, Kathy Adamson (Jennifer Connelly), documentarista, fria e desinteressada, deixa-o à vontade para reatar seus laços com o futuro, o que ele efetivamente não se esforça por fazer. Ele tem, no entanto, um jeito de contornar as coisas, que encanta a Sarah, e os dois acabam por se apaixonar. Tudo muito simples como se vê, mas, a exemplo do filme “Felicidade”, de Todd Solodoz, este é apenas o verniz de Woodward Court. Suas camadas submersas mostram, a cada seqüência, que aquelas pessoas normais, aliás, normalíssimas, têm uma tendência perversa. E a perversidade aqui está ligada não ao comportamento ditado pelas circunstâncias, mas a um modo de ver as coisas e as pessoas. Um jeito que torna o outro não o que ele realmente é; sim o que se constrói sobre ele.
 


Isso no mundo dominado pela imagem assume um caráter demoníaco. As imagens do outro podem estar espalhadas por ruas, casas e lugares públicos, para o horror de quem as vê. Elas ganham vida, têm personalidade própria, ditam normas e formas de convivência, seja particular, seja coletiva. A partir daí, o outro se torna aquilo que elas projetaram; não o que o outro realmente é. Então, ele, que tem sua personalidade, passa a agir segundo o que foi construído por outras pessoas; qualquer gesto que o identifique se transforma numa farsa. A convivência com ele passa, então, a ser dificultada. Tanto que a qualquer presença sua, o pânico se espalha. Difícil não ver nesta projeção feita por Todd Field o comportamento dos EUA, “pós-5 de Setembro”: qualquer estranho, principalmente se for árabe ou muçulmano, pode ser, supostamente, um “terrorista”.



Comunidade revela sua perversidade
Muitas vezes esta fobia se manifesta coletivamente, envolvendo adultos e crianças. Estas, incentivadas pelos primeiros, se alvoroçam ao primeiro sinal da presença do outro. O outro em “Pecados Íntimos” é um ser humano de aparência estranha, Ronald James McGorvey, Ronnie (Jackie Earle Haley), responsável por um crime horrendo. Os habitantes de Woodward Court o tratam como alguém que deveria estar trancafiado, sem direito a viver em paz, para o resto da vida. A assustá-lo há outro ser, igualmente pavoroso, porém, Larry (Noah Emmerich), e tido como cidadão respeitável. A comparação entre ambos é que faz emergir o lado maligno, doente, de uma comunidade que zela pouco pelo real. E também leva a refletir sobre o que a pessoa realmente é; ao invés de se preocupar com as aparências. No entanto, são estes temores que a mantém unida, capaz de revolver montanha para preservar seu cotidiano modorrento.



Todd Field não a poupa. Adentra à casa de Ronnie, tido como ameaça, e mostra que ali há uma relação familiar exemplar, de amor, de respeito e de solidariedade, entre ele e sua mãe, May (Phyllis Somerville). Um fato chocante para quem aguarda estereótipos, embora Todd Field não seja complacente, evita pelo contrário que o público se identifique gratuitamente com o personagem. Não joga com nenhum dos dois – Ronnie ou Larry – por mais que haja sempre uma tendência a pender para um deles. Principalmente diante das aparências prevalecentes na comunidade. Mesmo as mulheres que levam os filhos ao parque pertencem ao grupo das que, à ausência de algo melhor, se entendiam, perdendo-se em fantasias, mas têm alternativas a este tipo de vida. Fora de seu grupo existem as que escapam ao tédio. Discutindo clássicos da literatura em seu círculo literário, de forma realista e construtiva.



Lado sombrio dos personagens emerge
Há nesse grupo de mulheres um traço da geração dos anos 60, pois são, em sua maioria, da terceira idade. Ainda conservam uma tendência à discussão, à polêmica, sem medo de analisar o comportamento da mulher. Diferente de suas colegas que se submetem às agruras do cotidiano, Sarah, por influência de uma amiga, participa de uma reunião desse grupo, no dia em que a discussão é sobre “Crime e Castigo”, de Dostoievski. E hesita entre as preocupações liberais desse seu novo grupo e sua relação com Brad, que se tornou uma saída para ambos. Esta dualidade se dá em meio às frustrações provocadas por Richard, mais interessado em suas fantasias geradas pela web, que na relação madura e amorosa com sua mulher. Brad, por sua vez, nada espera da vida, senão a repetição de seus fracassos. Cada um deles vive, assim, num beco sem saída. A ponto de partirem para uma última cartada.



É fantástica a maneira como Todd Field penetra no íntimo de cada um dos personagens – dos marginalizados pela comunidade aos casais que não mais se toleram. Eles têm segredos que temem revelar a si próprios. Escapam em busca de relações que possam tirá-los das armadilhas que montaram para si próprios ou nela foram enredados pela estrutura social que os tornam reféns das aparências. E ressaltam, notadamente, como uma pessoa pode se tornar refém da outra, depois de tentar lhe causar todo o mal que pôde. A cena em que Larry carrega Ronnie pelo parque e depois pelo hospital reflete esta dependência. Nenhum deles irá sobreviver sem que o outro o ajude. É o reverso do início de “Pecados Íntimos”, quando o lugar comum parecia predominar.



Arroubos juvenis são fatais para Brad
Guardadas as proporções existe muito de “Sobre Meninos e Lobos”, de Clint Eastwood, em “Pecados Íntimos”. É todo construído sobre enganos, aparências, para ir, aos poucos, desconstruíndo e mostrando o lado possível das relações humanas. Os arroubos juvenis de Brad levam-no a uma situação que o impede de consolidar uma ação que mudaria sua vida. O mesmo se dá com Sarah. Tomada de medo pelo que poderia acontecer à filha Lucy (Sadie Goldstein), ela passa do horror à compaixão, diante do que ocorre a Ronnie. Uma mudança que a faz refletir sobre os danos causados pelas aparências criadas pela comunidade para tornar o outro uma ameaça. O outro não pode ser uma imagem, um cartaz pregado na parede, alertando a comunidade sobre algo que essa pessoa/imagem cometeu no passado, mas que ela, a comunidade, insiste em tornar permanente, pregado nela para o resto da vida.



Situação idêntica se dá com Larry e Ronnie, obrigados a se unir um ao outro, para permanecerem vivos. E Todd Field encerra seu filme de forma brilhante, não dando chance ao espectador de escapar à condenação que ele imprimiu neste perverso jogo de imagens, que desmentem as aparências. Todo o castelo montado ao longo do enredo se desfaz de uma maneira raramente vista no cinema contemporâneo, obrigado a optar por um final fechado, que representa muitas vezes a opção do produtor, mais voltado para a bilheteria; ou aberto, caso típico do cinema de arte, em que o diretor deixa o espectador no ar, cheio de dúvidas. Pode ser neste caso uma forma democrática por se deixar em aberto uma situação, que ele, espectador, completará à sua maneira. Mas Todd Field foge a este estigma, às idiossincrasias juvenis de Brad e à culpa de Sarah, aliados ao condicionamento imposto a Ronnie pela comunidade, e termina por ditar um desfecho incomum, para uma arte essencialmente vinculada aos padrões do realismo.



Filme discute incapacidade do ser humano se superar
O que se discute em “Pecados Íntimos” é a dificuldade de os seres humanos, centrados aqui na classe média americana, verem para além de seu cotidiano, situação que os fariam romper com o que os oprime de forma organizada, sem prender-se à estrutura moral e ética da sociedade capitalista. O fracasso de Sarah e de Brad reflete este condicionamento, sem que Todd Field caia em moralismos e reducionismos que tirariam o brilho e a contundência de sua obra. Nela não se fala em política, mas ela está lá, no medo e nas aparências, numa reflexão consciente do diretor sobre o comportamento da classe média americana, na Era Bush.



Uma rápida cena confirma esta análise: na sala de edição, Kathy revê a seqüência em que uma criança iraquiana fala sobre o impacto da morte do pai em sua vida. É, indiretamente, a condenação dessa guerra que tem muito de imagem e aparência, obrigando todo um povo a viver segundo esta falsa realidade. Nem o cinema moderno que se constrói, na maioria das vezes, sobre imagens e projeções da realidade, consegue deixar de refletir a superestrutura de classe e as relações sociais construídas no sistema capitalista. Muito menos a classe dirigente que tenta criar uma realidade, a partir das aparências. Acaba por se denunciar e, por conseqüência, se desmoralizar. É o que, lentamente, ocorre com o governo Bush em relação ao Iraque, e é discutido indiretamente por Todd Field em seu filme “Pecados Íntimos”.



“Pecados Íntimos” (Little Children). Drama. EUA, 2006, 130 minutos. Roteiro: Tom Perrotta e Todd Field, baseado no romance de Tom Perrotta. Direção: Todd Field. Elenco: Kate Winslet, Patrick Wilson, Jennifer Connelly e Jackie Earle Haley.
              


(*) Indicado ao Oscar nas categorias de Melhor Atriz (Kate Winslet), melhor Ator Coadjuvante (Jackie Earle Haley) e Melhor Roteiro Adaptado ( Tom Perrotta e Todd Field).

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