PSOL: eleitoralismo e esquerdismo

No final do ano passado, o conceituado sociólogo Emir Sader caracterizou o recém-legalizado Partido do Socialismo e Liberdade (PSOL) como “uma estranha combinação de ultra-esquerdismo e eleitoralismo” e anteviu um futuro turbulento para esta legenda

Num pólo, alguns setores desta organização híbrida – que já agrega mais de dez grupos no seu interior – articulam alianças para que o partido se viabilize eleitoralmente. No outro, forças que se autoproclamam de revolucionárias rechaçam qualquer ampliação de alianças e acusam os seus proponentes de ferirem a democracia interna.


 

É certo que as negociações de setores do PSOL para costurar alianças eleitorais não têm se dado de forma transparente. Não há qualquer posição oficial da direção do partido sobre o tema. No Congresso Nacional, porém, estas conversações de bastidores já se tornaram motivo de comentários irônicos. A própria mídia hegemônica especula sobre elas. Um artigo do Correio Braziliense (09/02/06) antecipou que “o PDT e o PSOL estão perto de fechar um acordo para apresentar um candidato único à Presidência da República. A aproximação entre as duas legendas é feita às claras. A reunião de ontem que discutiu o assunto aconteceu no cafezinho do Senado. ‘Não temos nada a esconder’, disse o deputado federal João Fontes (PDT-SE)”.

 

Ainda segundo a mídia, a senadora Heloísa Helena, pré-candidata à sucessão e vitrine eleitoral do PSOL, participa ativamente destas articulações – apesar de suas negativas. Outra liderança que defende alianças é o deputado Ivan Valente, dirigente da Ação Popular Socialista, que recentemente aderiu ao PSOL. “A aliança mais importante que poderíamos fazer, do ponto de vista do tempo de televisão e da estruturação partidária, seria com o PDT”, argumenta. Há até vozes que pregam coligações mais heterodoxas. Segundo João Alfredo, outro parlamentar eleito pelo PT que bandeou de partido, “o PSOL atualmente negocia com setores antipetistas do PDT, PPS, PSB e PV com o objetivo de construir uma terceira via pela esquerda”.

 


Ambiente esquizofrênico


 

Diante das negociações em curso, que podem não vingar, algumas correntes internas do PSOL estão com os nervos a flor da pele. Várias delas – o Movimento de Esquerda Socialista (MES), da deputada Luciana Genro, a Corrente Socialista dos Trabalhadores (CST), do deputado Babá, o Movimento Terra, Trabalho e Liberdade (MTL) e o Socialismo e Liberdade (SOL) – têm a mesma matriz teórica do PSTU e costumam taxar qualquer política de alianças de traição. Outros setores abandonaram recentemente o PT, desiludidos com os rumos do governo Lula, e tentam se diferenciar ao máximo de seu ex-partido. Acusam a política de alianças como culpada pelas limitações do governo, que teria abandonado a perspectiva socialista.

 

Neste clima meio esquizofrênico, o tiroteio é intenso. Em fevereiro passado, o diretório estadual do PSOL do Pará divulgou documento no qual se disse “surpreendido pelas notas na imprensa sobre as negociações avançadas entre PSOL e PDT”. Hegemonizado pela CST, este comitê rechaça qualquer aliança e acusa o PDT de ser liderado por “um dos maiores latifundiários do sul do Pará”. Mas o problema, segundo a irada direção, não é local. “Estado por estado, essa coligação só pode significar desmoralização e retrocesso do  partido. Não queremos nem imaginar o que significaria para São Paulo, berço da Força Sindical e terra do Paulinho [presidente do PDT-SP]… Até a esquerda petista defensora da CUT teria chance de rir da gente”.

 

Menos incisivo, Pedro Ruas, dirigente do MES, também rejeita as propostas de coligação. “No caldeirão de mediocridade da política nacional, o PDT é somente mais uma sigla. Sem propostas concretas, sem projetos fora das eleições, ele consegue ser de tudo um pouco (até em virtudes), menos verdadeiramente trabalhista. Ora, não sendo trabalhista, ele não é nada. Não é admissível imaginar alianças que somente busquem dividendos eleitorais, ainda mais com o risco de descaracterização do PSOL. Dessa forma, para o nosso partido, uma aliança com o PDT pouco acrescentaria e muito prejudicaria”.

 


No mesmo rumo, a corrente formada pelo economista Plínio de Arruda Sampaio Jr e pelo dirigente cutista Jorge Martins, entre outros, defende a construção de uma frente exclusiva de esquerda. No caso do PSTU, ela ainda faz ressalvas “devido à postura nada fraterna e sectária adotada por este partido”. A sua rejeição maior, porém, é aos partidos “que reproduzem a decadente política burguesa, como PV, PDT e PPS. Não é coerente a aliança com partidos que num estado estão na base do governo Lula e em outros na base dos governos tucanos (PPS e PV), ou de partidos que aceitam camadas inteiras do pior da burocracia sindical (Força Sindical) e no Congresso fazem blocos políticos com o PSDB e o PFL (como é o caso do PDT)”.


 



 


Risco de retrocesso


 


 


A bronca de várias correntes internas, porém, não se restringe à política de aliança. Para agravar a cizânia, alguns setores criticam sua diluição programática e o crescente desrespeito à democracia. Um coletivo de militantes dos grupos Socialismo Revolucionário (SR) e MTL chega a advertir para o “risco de retrocesso no PSOL… O impasse e a paralisia da direção nacional, a debilidade das suas instâncias, a crise aberta na definição dos critérios para o congresso e o debate mal feito sobre eleições, alianças e até mesmo sobre a candidatura presidencial são sinais claros de um projeto ainda incompleto, sujeito a todo tipo de pressão”. O temor é que o “PSOL se transforme numa réplica do PT, num partido que se guia pela lógica eleitoral”.


 



Ainda segundo este texto, bastante elucidativo, “o risco de recuo se torna ainda mais perigoso na medida em que já existem elementos de retrocesso na organização partidária e nas relações entre correntes e entre instâncias… Há uma ênfase na destrutiva disputa fracional por espaço e controle do partido. Existe o risco concreto de um processo de ‘petização’ da estrutura partidária na medida em que a prioridade da disputa numérica leva ao inchaço artificial dos núcleos e ‘militantes’… Conhecemos a experiência do PT no início de sua degeneração e sabemos onde vai dar. Passa a ser um partido de núcleos e militantes ativos somente às vésperas de congresso, que funcionam como apoiadores eleitorais organizados em torno de mandatos”.


 



As tensões internas no PSOL já apresentam alguns episódios curiosos – que maculam a imagem vendida de que este seria um partido “puro e diferente”. A tal “disputa fracional” é visível. O recente ingresso de correntes que abandonaram o PT após a eleição para sua direção nacional só se deu com a introdução no estatuto da estranha “filiação democrática”, que permite que os novos filiados desrespeitem as orientações partidárias. A própria adesão da APS exigiu cansativas rodadas de negociação. Segundo o relato de João Machado, membro da executiva nacional, chegou a se propor que ela só fosse aceita após o I Congresso, garantindo que “os militantes da APS tenham deveres e direitos iguais aos demais militantes do PSOL”.


 



Já o seu “inchaço artificial” tem gerado algumas cenas constrangedoras. Vale reproduzir um longo trecho da reportagem da revista IstoÉ (01/03/06): “O polêmico PSOL está em crise. De crescimento. O estrelato da senadora Heloísa Helena na CPI dos Correios atraiu para a legenda 16 mil filiações, abriu a chance de uma boa performance na eleição presidencial, mas, em compensação, atraiu políticos não exatamente comprometidos com a luta ‘contra o capital financeiro-imperialista’. ‘Esse negócio de esquerda ou direita é modismo’, diz o ex-tucano Edson Ferreira de Brito, presidente do diretório de Sidrolândia (MS). ‘Não há problemas em recebermos tucanos ou pefelistas’, ecoa o presidente regional do PSOL no Estado”.


 



“A divisão entre puristas, que defendem um ferrolho ideológico, e os liberais deve render uma boa briga. Todo o diretório do PSOL na Bahia foi destituído porque os chefes da legenda descobriram o passado de seus integrantes. ‘Eles haviam sido candidatos pela direita tradicional’, aponta Gustavo Mercês… ‘O PSOL tem um charme solar para atrair aventureiros’, acredita o vice-presidente do partido no Rio.


 


Ali, a aguerrida ex-vereadora do PDT, Regina Gordilho, teve a sua filiação negada. ‘Não concordo com o veto ideológico fundamentalista’, critica o deputado Chico Alencar. A própria pré-candidata a presidente abre uma janela para a massificação. ‘Não são aceitos os capitalistas, vigaristas, racistas, homofóbicos e outros que representam a minoria do povo brasileiro, mas a grande maioria eu aceito’, sustenta Heloísa Helena”.


 



Fragil unidade


 


Diante destas flagrantes contradições, crescem as dúvidas sobre o futuro deste partido. O PSTU, que tenta se perfilar com uma carapuça ainda mais esquerdista, procura tirar a sua casquinha do concorrente. Numa  jogada arriscada, ele formalizou a proposta da “constituição de uma frente de esquerda” com o PSOL e o PCB. Ele até aceita que Heloísa Helena encabece a chapa presidencial, mas reivindica a vaga da vice. Ao mesmo tempo, o PSTU alfineta ao exigir que a frente “tenha caráter classista, sem a presença de partidos burgueses, como o PDT”, e critica o pré-lançamento de candidatos do PSOL nos estados. “Não há como constituir uma frente de esquerda nestas condições. Não haverá a simples adesão do PSTU”, esbraveja.


 



Até agora esta tática arriscada ainda não rendeu frutos. Após ter sido sangrado pelo concorrente, o PSTU parece querer dar o troco. Tanto que alardeou uma carta de dois desfiliados do PSOL no Rio de Janeiro, que ataca as distorções do partido. “Eles começaram com a presença de Heloísa Helena no encontro do PDT, onde elogiou figuras como Carlos Luppi, afirmando que ‘aqui no PDT estão os que não se dobram, os que não se curvam, os que não se ajoelham covardemente’. Depois veio a aceitação de figuras como Maninha e Ivan Valente, que cumpriram o papel de segurar a base mais tempo no PT, e de Chico Alencar, que votou a favor da reforma da previdência. Por último, o senador Geraldo Mesquita e o escândalo do ‘mensalinho’. Estes equívocos partem da opção política equivocada de priorizar o parlamento burguês”.


 



Como se nota, a confusão no interior do recém-nascido PSOL é gigantesca. Enquanto alguns grupos mais voluntaristas apostam na iminente falência do “ciclo do PT, na derrubada do governo Lula e no processo de ruptura anticapitalista”, sonhando com a revolução socialista na próxima esquina, outros setores mais pragmáticos só pensam nos trunfos eleitorais advindos da popularidade da sua candidata à Presidência da República. O programa do partido é genérico, bastante centrado na difusa bandeira da “ética na política”; a sua estratégia tem um forte componente eleitoral; e a sua organização é totalmente difusa – é mais uma frente híbrida de inúmeras tendências e interesses do que propriamente um partido político.


 



Na prática, o que ainda garante a sua aparente unidade é a oposição frontal ao governo Lula e a rancorosa aversão ao PT – o que muitas vezes produz cenas televisivas grotescas de conchavos com os expoentes da direita neoliberal no Congresso Nacional. Durante a disputa eleitoral, com uma campanha que priorizará o ataque “pela esquerda” ao governo Lula, o PSOL terá generosa exposição na mídia e poderá até sonhar com importantes rendimentos eleitorais. Mas, passada a refrega de outubro, o que sobrará deste partido que tem gerado expectativas numa parcela do movimento social organizado? Será uma nova desilusão e frustração, que teria contribuído apenas para reforçar o sectarismo e a fragmentação no campo popular?

As opiniões expostas neste artigo não refletem necessariamente a opinião do Portal Vermelho