Qual o legado do manguebeat 30 anos depois?

Nascido na periferia, as ideias do movimento vão de Luiz Gonzaga, Jackson do Pandeiro, passando por Alceu Valença, Geraldo Azevedo e Jorge Mautner, a Sex Pistols, entre outras influências

Foto: Divulgação

Contra a cultura elitista imposta pela mídia, nasceu no Recife, em 1992, um movimento que faria ferver a cultura brasileira. Da periferia de Recife para o mundo, começou com o manifesto “Caranguejo com cérebro”, escrito por Fred Zero Quatro, do grupo Mundo Livre S/A, um dos ícones do manguebeat.

Começou com a proposta de dar “um choque rápido” para Recife não morrer de infarto, pois “não é preciso ser médico para saber que a maneira mais simples de parar o coração de um sujeito é obstruindo as suas veias. O modo mais rápido, também, de infartar é esvaziar a alma de uma cidade como Recife, matando seus rios e aterrando seus estuários”.

Então, “o que fazer para não afundar na depressão crônica que paralisa os cidadãos? Como devolver o ânimo, deslobotomizar e recarregar as baterias da cidade? Simples! Basta injetar um pouco de energia na lama e estimular o que ainda resta de fertilidade nas veias do Recife”, trecho do manifesto que sintetiza a proposta do movimento que conquistou o mundo.

Como na música A Cidade (1994), de Chico Science

  • “O sol nasce e ilumina as pedras evoluidas
  • Que cresceram com a força de pedreiros suicidas
  • Cavaleiros circulam vigiando as pessoas
  • Não importa se são ruins, nem importa se são boas
  • E a cidade se apresenta centro das ambições
  • Para mendigos ou ricos e outras armações
  • Coletivos, automóveis, motos e metrôs
  • Trabalhadores, patrões, policiais, camelôs
  • A cidade não para, a cidade só cresce
  • O de cima sobe e o de baixo desce
  • A cidade não para, a cidade só cresce
  • O de cima sobe e o de baixo desce”

Prevaleceu o protesto contra a perversidade do capital destruidor de vidas e sonhos. Já começou pelo nome em alusão ao manguezal recifense, onde as catadoras e os catadores de caranguejo penavam para tirar o sustento da família. Beat vem do inglês e significa batida em nossa língua.

Mas foi com a genialidade de Chico Science (1966-1997) e o grupo Nação Zumbi que o manguebeat ganhou notoriedade, ao mesclar os sons regionais de Pernambuco com o rap, o rock, o tropicalismo e a MPB. Nasceu algo inusitado com forte batida e acordes dissonantes aos ouvidos e cérebros recalcitrantes a mudanças.

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O símbolo escolhido foi uma antena parabólica fincada na lama para mostrar a ideia de unir as raízes da cultura popular, rompendo o tradicional e antenando-se com o mundo e, dessa união, forjar um movimento de contracultura voltado para o popular.

Nascido na periferia, as ideias do movimento vão de Luiz Gonzaga, Jackson do Pandeiro, passando por Alceu Valença, Geraldo Azevedo e Jorge Mautner, a Sex Pistols, entre outras influências. Eles criaram um movimento cultural com o objetivo de juntar a riqueza do manguezal, com toda a sua biodiversidade, à diversidade humana. Com isso, chegou ao cinema e às artes plásticas. Notam-se propostas do manguebeat nos filmes de Kleber Mendonça Filho, por exemplo.

Também em Por Pouco (2010), de Fred Zero Quatro e Marcelo Pianinho

  • “Estamos quase sempre otimistas
  • Tudo vai dar quase certo
  • Pois o ano está quase acabando
  • Depois de termos quase certeza
  • Que dento em breve teremos um quase
  • Alegre carnaval
  • Por pouco não trouxemos o penta
  • Quase acertamos na loto
  • Quase compramos a casa
  • Quase ganhamos o carro
  • A moça da banheira ficou quase nua”

“O Manguebeat exerce ainda uma influência muito grande na cultura pernambucana. Hoje, esse conceito de diversidade cultural é hegemônico por aqui. Também acho que há uma lição embutida no movimento de como se organizar coletivamente, com poucos recursos, para mudar as coisas”, afirma Renato L., um dos fundadores do movimento.

As ideias do manguebeat em relação a romper o lacônico domínio imposto pela indústria cultural, do eixo Rio-São Paulo, permanecem atuais devido à necessidade de o Brasil se encontrar e se enxergar em si mesmo como nação, em toda a sua diversidade étnica, cultural e social. Romper com o tradicional para superar a mesmice.

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