Que é a morte, senão a outra face do dia?

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O tempo de viver não nos enfraquece. Ficamos, isto sim, mais espadaúdos, malhados. Se curvamos a espinha não é por cansaço ou desalento. É que viver significa ajuntar pequenas coisas que vão virando fardos, doces ou aflitivos, em nossos costados. Trabalhos, caminhos. Uns em recreio ou desobriga; outros, sonhados e, que nem por isso, esvaem; alheiam. Volumes lembranças do que fomos, ou sonhávamos. Afinal, o presente, as companhias de nosso dia revelado. Mas nossa bagagem maior é de ausências. Rostos, sentimentos, hóspedes do projeto carnal afeito à corrosão. Não deploro a ausência das coisas acessórias que vêm e vão. Não pesam porque não levam afeição. Não pertencem. Comovo-me com o silenciar repentino das faces queridas, ou apenas vislumbradas, na fugidia janela. Nossos mortos completam o comboio de nossas vidas. Já não seguimos sozinhos, nem em pares ou grupos. Vamos em multidão, cada vez mais povoados de sombras e vozes. Nossos mortos não nos deixam mirar o passado. Vivos da memória, são nosso futuro. Esses dias tenho sido acossado por esses chegantes com suas jornadas. Há pouco tempo, minha mãe arranchou definitivamente na lembrança. Depois Salustiano Ayres da Fonseca, o primo de alguma distância, com sua cabeleira alva, seus olhos azuis e seu tesouro memorial de nomes, lugares, fatos. Era a memória viva de minha família, hoje habita a sala de sua enorme grei. Nesta quarta-feira, me chega do Riachão das Neves a notícia do vôo de Isabel Ayres, aquela tia, última da irmandade de minha mãe, sobre a qual escrevi um pequeno poema que aqui recordo:
 
Isabel

Isabel nunca maldisse a vida. /Isabel vive ali no Brejinho/acolhendo o mundo. /Vem cá, minha irimã!/Vem cá, meu sobrinho!/Vem cá, meu neto!/O riso claro adoçando o canavial/E as rapaduras da terra. /Toma este umbu!/Toma o cuscuz, o beiju!/Mal nasce o dia, /Isabel recomeça a lida: /cuidar das ervas, dos bichos do sítio,/tarefas de alimentar, e sorrir, abraçar,/espalhar, generosa,/o afeto de mulher,/de tia, mãe, e avó./Eta lida danada!/Isabel nunca maldisse a vida. /Isabel vive ali, no Brejinho, /acolhendo o mundo. E outros tantos invisíveis sobre nossos ombros. Amigos, poetas, pensadores, presenças que já não podemos dispensar, como amigo, poeta, pesquisador Carlos Fernando Filgueira de Magalhães. Sócio do Instituto Histórico e Geográfico de Goiás que partiu neste feriadão, deixando em sua biografia uma esteira de criações inesquecíveis em vários campos da arte e da literatura. Finalmente sabemos que a morte não nos angustia. Porque não carece busca nem pesquisa. Ela vai se aproximando todos os dias e, paradoxalmente, permitindo uma luz especial sobre o momento da vida. E os que julgávamos mortos vão navegando canoas encantadas com os remos que suas mãos, mentes e emoções lavraram no miraculoso dia de suas existências. Assim, penso eu, consolável: Que é a morte, senão a outra face do dia?

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