Quem desconfia, fica sábio…

Em “Grande Sertão: Veredas”, há uma chave segundo a qual o Brasil são muitos e
as disparidades regionais definem o cotidiano feminino

“O mais recente estudo da ONU, no primeiro semestre de 2007, revela que a maioria dos governos que adotaram a autorização do aborto por questões econômicas e sociais está no bloco de países ricos. Segundo o levantamento, 78% das economias desenvolvidas estabeleceram leis nesse sentido. Entre os países pobres, apenas 19% deles têm a autorização” (Um terço dos países admite aborto. Estadão, 02.09.2007).


 


Por paradoxal que possa parecer à primeira vista, a matéria avivou em minha memória as mulheres rosianas. Fiquei matutanto, tentando entender porque foi tão forte ler a matéria e evocar as mulheres rosianas. É que em Grande Sertão: Veredas, de Guimarães Rosa, há luzes para entender que é equivocado querer salvar apenas uma árvore quando a floresta está pegando fogo. Seria um esforço em vão e uma opção por um beco sem saída.


 



As intelectuais orgânicas do feminismoo deveriam revisitar (ou visitar?) Grande Sertão: Veredas tão-somente para que aprendamos a desconfiar e o ” jeito de farejar neblinas”.


 


 


A exemplo de Gabriela Frota Reinaldo, ouso dizer: “O que me atrai na obra de Rosa não são os aspectos lingüísticos ou regionais. Tampouco a matriz religiosa, mítica. É tudo isso, mas há mais que não conseguimos explicar que é o que torna o texto bonito. É essa assombração, é isso que não se consegue enxergar – e o jeito é farejar neblinas – e que está na busca pela poesia. É esse alumbramento que se repete em cada leitura”.


 


 


Em Grande Sertão: Veredas, há uma chave simbólica que nos impregna da realidade que o Brasil são muitos e as disparidades regionais em muito definem o cotidiano feminino, já que para o seu autor o sertão “ora é particular, pequeno e próximo; ora universal e infinito, pois o sertão é o mundo” ou, melhor ainda, “o sertão é dentro da gente” .


 


 



Em Grande Sertão: Veredas, há uma exuberância das diferentes moralidades. Eis um aspecto em que Guimarães Rosa é magistral. Eis a razão de porque as mulheres rosianas nos possibilitam redescobrir (ou descobrir”?) o direito de decidir sobre o próprio corpo como um direito democrático é também inerente à natureza, à cotidianidade e à intimidade das mulheres, desde sempre, sem muitos leros.


 


 



No sertão as mulheres não abortam. “Perdem”. É isso. Apenas perdem. Faz parte. É natural. Assim como não perder. Ora, se é possível apenas “perder” quando não se quer prosseguir com uma gravidez indesejada/inesperada, falar em plebiscito para o aborto é incabível. Sempre que ouço alguém do atual governo falar em plebiscito sobre aborto reporto-me ao “velho Guima” que, sabiamente, a exemplo do “velho Marx” (“É preciso duvidar de tudo!”), nos alertou que “Quem desconfia fica sábio”, pois: “A vida é muito discordada. Tem partes. Tem artes. Tem as neblinas de Siruiz. Tem as caras todas do Cão e as vertentes do viver.”


 


 


“A vida é ingrata no macio de si; mas transtraz a esperança mesmo do meio do fel do desespero.” Assim sendo, é bom que aprendamos que: “Viver é negócio muito perigoso…” “Viver é um descuido prosseguido” . “Viver – não é? – é muito perigoso. Porque ainda não se sabe. Porque aprender-a-viver é que é o viver mesmo.”


 



Estou convencida que, como Riobaldo, urge que nos encharquemos de uma percepção mais próxima da realidade, similar à que Diadorim impregnou Riobaldo em sua travessia para a percepção da beleza telúrica do grande sertão, doando-lhe uma nova base filosófica: “Mariposas passavam muitas, por entre as nossas caras, e besouros graúdos esbarravam. Puxava uma brisbrisa. O ianso do vento revinha com o cheiro de alguma chuva perto. E o chiim dos grilos ajuntava o campo, aos quadrados. Por mim, só, de tantas minúcias, não era o capaz de me alembrar, não sou de à parada pouca coisa; mas a saudade me alembra”.


 


 


É preciso dizer ao governo: “O senhor tolere, isto é o sertão”… E o sertão como metáfora da condição humana, que desvenda de modo exuberante como vivem as mulheres rosianas. E as mulheres rosianas reconhecem “as neblinas de Siruiz”.

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