“Quem quer ser um milionário”: efeito Índia
A índia dos intocáveis surge no filme do inglês Danny Boyle sem menção alguma sobre a divisão de classe no país e sugere que a única saída para eles é ganhar dinheiro em programa de televisão ou integrar os grupos que compõem o crime organizado.
Publicado 15/05/2009 17:59
Depois das narrativas entrecortadas dos anos 60 e 70, o cinema caiu na estética do vídeoclip, fundindo tempos, efeitos e cenas rápidas. O que parecia contribuir para mudanças técnicas efetivas, inclusive com novos conteúdos, redundou numa sucessão de filmes com aparência de vanguarda. Burilaram de tal maneira estas fórmulas que, hoje, qualquer filme, como já observamos em “O Leitor” (veja crítica do dia 07/05/09), para ter aparência de avançado tem de valer-se de artimanha para que o público não perceba a reciclagem. É o que o diretor inglês Danny Boyle faz em “Quem Quer Ser Um Milionário”, ganhador de oito Oscar(1), caso isto tenha alguma importância em termos de contribuição artística efetiva. Boyle, dos ótimos “Trainspotting” e “Cova Rasa”, trabalha a partir do roteiro de Simon Beaufoy, baseado na novela de Vikas Swarup, “O&A”, para contar em três tempos a história do garoto Jamal Malik, ex-favelado e contínuo numa operadora de Telemarketing, que participa de uma gincana de perguntas e respostas na televisão. Um tema, por si, popular, ainda mais sob a ótica da ascensão social, tão cara aos países onde a pobreza impera, como na ascendente Índia.
Boyle, então, pega os vários fios da história do marginalizado, Jamal K. Malik (Dev Patel), situado na camada mais baixa da sociedade indiana, e o transforma num garoto limpo em meio à podridão. Nada mais religioso do que a parábola do ímpio que triunfa sobre esgotos, corrupção, violência, exploração de menores, tráfico e, sobretudo, a humilhação permanente. E com um único objetivo, o amor. Soa falso dito desta maneira, mas como ele, o diretor, o conduz em “Quem Quer Ser Um Milionário” não há porque não ter outra visão. As cenas que poderiam dar uma dimensão humana ao personagem são narradas em ritmo de clip, com fugas e golpes dos garotos Jamal e seu irmão Salim (Madhur Mittal) pelo país, apenas para situar o tipo de vida que passam a levar, depois de uma tragédia ter mudado suas vidas. As cenas demoram um pouco mais apenas nas sequências de iniciação de Salim no mundo do crime organizado, pontuado por exploração de menores, assaltos, tráfico de drogas e deformação de crianças para cantar e mendigar em áreas povoadas.
Tom farsesco domina maioria das cenas
As cenas, movimentadas, passam ao largo dos problemas vividos pelos marginalizados. São mostrados apenas como massa disforme; sobrevivendo em meio aos rios pútridos, onde lavam roupa, tomam banho e usam sua água para cozinhar; sendo massacrados por serem muçulmanos; nada que outros filmes não tenham feito desde os anos 50. Uma forma de dizer: olhe aqui, este povo vive assim e vamos em frente. Algumas sequências, embora em tom farsesco, ainda guardam os bons tempos de Boyle. Numa delas, o menino Jamal joga-se numa fossa cheia até a borda e de lá sai para pegar o autógrafo de seu ídolo, Amitabh Bachchan, que visitava o aglomerado onde ele, o garoto, sobrevivia. Noutra, ele e Salim, depois de uma fuga por entre becos e terrenos baldios, refugiam-se num barraco. Então, aparece menina Latika (Freida Pinto), e Salim diz a Jamal que, sendo ele agora o chefe da família, ela, por ser mulher, não ficaria ali com eles. Contextualiza, em poucos segundos, a situação da mulher indiana, mesmo com todos os avanços conseguidos.
Mas são momentos raros; quase pinceladas para não ferir suscetibilidades das camadas médias indianas. O que conta mesmo em “Quem Quer Ser um Milionário” são os tempos narrativos e os entrechos da relação amorosa entre Jamal e Latika, os instantes que está na televisão lutando para se tornar um milionário e as torturas sofridas na delegacia por ter uma mente ágil e conhecimentos de charadas. Em flashbacks, Boyle e Beaufoy vão, linearmente, situando cada instante da história, pondo o espectador em contato com situações que lhe permitem entender as reações de Jamal e sua busca obsessiva do amor de sua vida. Ele, o espectador, então torce em três tempos: quando ele está na delegacia, na televisão e em sua busca de Latika. Cada uma dessas tramas encadeia-se com a anterior e com a que a sucede. Fica em constante tensão, querendo que ele escape de cada situação criada. Uma manipulação e tanto de sentimentos, energia e adivinhação para chegar a um clímax que, de antemão, ele, o espectador, já sabe. Isto porque, Boyle sucumbe, também, à estética de Bollywood (veja em TEM A VER); a narrativa cinematográfica indiana que encadeia melodrama, musical e happy-end.
Boyle busca realismo e encantamento no filme
Há, no entanto, a busca do realismo e do encantamento. O primeiro decorre das sequências nos aglomerados onde vivem milhões dos mais de um bilhão de indianos. Este realismo climatizado pelo uso de filtros chega a ser cru nas cenas da delegacia e nas em que a câmera de Boyle e de seu codiretor indiano, Loveleen Tandanse, flagram instantes em que Jamal e Salim são submetidos a maus tratos e obrigados a sobreviver em meio à miséria absoluta. Mas é quando Jamal está diante do animador do programa “Quem Ser Ser um Milionário” que o encantamento predomina. Há em várias sequências o conhecido apelo visto pelo espectador na franquia “BigBrother” ou nos vários programas do SBT, em que a busca pelo dinheiro dita a audiência. O que mobiliza cerca de 20 milhões de telespectadores é assunto em qualquer mesa de bar e torna Jamal Malik celebridade nacional. Predomina, além disso, o tom superficial e de fantasia desse tipo de programa. Nada ali leva em conta sentimentos, apenas a manipulação dos instintos primitivos do telespectador.
O tom de voz e os falsetes do apresentador Prem Kumar (Anil Kapoor), talvez o melhor personagem do filme, beiram o ridículo. Nos remete às peripécias de Ging Young em “A Noite dos Desesperados”. Ele sabe que está ali para manipular, fazer o público torcer, por o jovem Jamal em apuros e, assim, conquistar elevados índices de audiência, que, afinal, é o que, para ele, conta. Nada de sentimentos, verdades, só brincadeirinhas, falso suspense e até uma casca de banana joga para o participante. Sua conversa com o coordenador do programa sintetiza tudo, pois ali, como nos cassinos, ninguém deve ganhar da banca. Mesmo assim são os melhores momentos do filme. Revelam mais sobre a televisão e a Índia, tanto à frente das câmeras como nos bastidores, do que talvez Boyle e Beaufoy pretendessem. O auditório, os cenários, os holofotes criam uma imagem de sonho; um lugar onde poucos podem se tornar um milionário. E com uma cruel sentença: aquela parece ser a única chance que os parias, os intocáveis, último degrau das camadas sociais indianas, têm para ascender socialmente.
Diretor lança olhar enviesado à rua
Através desta situação, Boyle lança um olhar enviesado à rua e mostra que há nela um clamor pela vitória do jovem intocável, que em nenhum momento é citado como tal. Durante todo o filme eles, os intocáveis, aparecem, mas são vistos apenas como pobres, não fruto de uma estratificação social. Boyle, pelo contrário, não parece interessado nisto. Às vezes mergulha na falsa crítica social, ao ceder a palavra a Salim, que, do alto do prédio onde reencontra o irmão Jamal, olha para a cordilheira de prédios que ocupa a área onde antes ficavam milhares de barracas e diz: eu era feliz aqui. Soa, e é falso, pois vende a idéia tão cara à teologia de que sofrimento redime. A miséria é tão só a forma degradada da exploração político-econômica, da exclusão dos trabalhadores e, por que não, dos lupens, da divisão da riqueza, não condição suprema da felicidade. O Jamal de Boyle é, desta forma, alguém destituído de qualquer ambição maior, que não o amor de Latika. Um ser à margem de tudo. Um personagem, guardadas as devidas proporções, à semelhança do interpretado por Peter Sellers, em “Muito Além do Jardim”. Capaz de responder a tudo, menos raciocinar sobre o que o rodeava.
“Quem Quer Ser Um Milionário” é, assim, o típico filme deste fim da Era Neoliberal: fala sobre os problemas, mas não os conecta. Fala de tudo, porém, não os qualifica; não lhes dá nome de arte para que o espectador possa refletir sobre a arte, ainda que seja uma comédia à moda de “Marley & Eu”. Este, no entanto, é aquilo ali, porém em torno deste “aquilo ali” há todo um contexto de classe, de modo de vida e de ambições que a riqueza cria. É mais honesto que contar a história de um jovem intocável, sem chamá-lo pelo nome real. Mais falso ainda quando põe o amor, nada contra tão belo sentimento, num patamar em que o dinheiro pouco importa. Parece até com: vamos viver felizes para sempre, debaixo do viaduto, sem saber que, hoje, é um dos locais mais disputados em qualquer lugar do mundo. Nos Estados Unidos do momento, principalmente. Esta é, no entanto, a conclusão a que Boyle submete o espectador: tudo por amor, com milhões no bolso, ganhos na loteria da TV.
Estética embaralha e é pura enganação
Muito do que se levantou aqui não deve passar despercebido ao espectador, mesmo diante do embaralhamento da forma narrativa, dos enquadramentos, dos cortes rapidíssimos, da cor saturada e dos filtros que passam a impressão de leveza, de fluidez e, sobretudo, de modernidade. Basta assistir a uma dezena de filmes que usam a mesma estética para ver que há, em “Quem Quer Ser Um Milionário”, muita enganação. Boyle quis, inclusive, contribuir para o “efeito Índia”, reforçando a idéia de prosperidade, mostrando os vários lugares históricos, entre eles o Taj Mahal, a multiplicação de gigantescos prédios em Mumbai, cidade de 20 milhões de habitantes, e a coreografia coletiva estilo Bollywood. Mais marketing do que isto, impossível. Daí a penca de Oscar recebido, reforçando o objetivo mercadológico que esta premiação enfeixa. No final, o espectador pode sair empolgado, diante da fantasia e do triunfo, vendidos em doses sedutoras por Boyle e seu roteirista Beafoy. Principalmente porque a embalagem é atraente e rende 120 minutos de fantasia (e muita ilusão).
“Quem Quer Ser Um Milionário” (“Slumdog Millionaire”).Inglaterra/EUA. Drama. 120 minutos. Roteiro: Simon Beaufoy, baseado na novela de Vikas Swarup, “O&A”. Direção: Danny Boyle. Codiretor: Loveleen Tandan. Elenco: Dev Patel, Freida Pinto, Anil Kapor, Irrafan Khan.
(1) Oscar de Melhor Filme, Diretor |(Danny Boyle), Roteiro Adaptado (Simon Beaufoy), Fotografia (Anthony Dod Mantle), Montagem (Chris Dickens), Trilha Original (A.R.Rahman), Canção Original (A.R.Rahman, Gulzar), Mixagem de Som (Ian Tapp, Richard Pryke, Resul Pookutty).
Tem a ver
Muitos filmes merecem ser vistos pelo tema e pela abordagem que seus diretores, muitas vezes, desconhecidos, lhes dão. A coluna, que às sextas-feiras, veicula análise de um filme em cartaz, fará breves comentários de um ou mais deles, para que o leitor possa assisti-los em reprises, mostra dos melhores do ano ou em DVD. É uma forma de não deixá-los à margem da discussão como os que mencionamos abaixo, que, de uma forma ou outra, discutem a sociedade indiana.
Cinema Indiano: para muitos no Ocidente, o cinema indiano não existe. Enganam os que pensam assim. Alguns já viram filmes indianos, dirigidos por Mira Nair, como “Salaam Bombay”, ou o mais recente, “Casamento Indiano (**)”, outros, mais velhos, admiram as obras de Satyajit Ray, autor da “Trilogia de Apu(**):”Canção da Estrada” (Pather Panchali), “O Invencível” (Aparajito), “O Mundo de Apu” (Apu Sansar), baseada na autobiografia de Bhibuti Bashan Bannerjee, sobre a vida do personagem central, Apu, em Benares e Calcutá; e muitos precisam conhecer as obras dos marxistas Mrinal Sem(“Mrigayaa!” e “Ek Din Pratidin) e Ritwik Ghatak (“Komal Ghandhar” e “Subarnarekha”), que buscam refletir sobre a realidade social indiana.
O cinema indiano, um dos mais antigos do planeta, surgiu em 1896, com a produção de filmes mitológicos. A partir de 1913, os três principais centros cinematográficos, Bombaim, atual Mumbai, Calcutá e Madras, definiram o estilo de cinema que predomina até hoje: drama popular com canto e dança. Estes filmes, sem relação alguma com os musicais hollywoodianos, portanto, são produzidos em híndi, língua oficial do país junto com o Inglês, tamil e bengali. Fato que tem dificultado a penetração maciça do cinema estadunidense. A Índia, segundo país mais populoso do mundo, com mais de um bilhão de habitantes, 1.652 línguas, é o maior produtor de cinema do mundo, com cerca de mil filmes anuais, seguido pela Nigéria, com cerca de 800 obras.
Comédias, musicais e melodramas ou a fusão dos três gêneros numa única obra são a marca principal do que é chamado Bollywood, ou seja, Bombaim mais Hollywood. Em “Quem Quer Ser Um Milionário” é prestada homenagem ao maior astro de Bollywood, idolatrado pelo garoto Jamal, que se joga na fossa para sair em busca do autógrafo de seu ídolo. Com a emergência do país como centro de excelência em computação, principalmente, falar sobre uma nação que vem desde o Paleolítico e tem como um de seus fundadores modernos, Mahatma Ghandi (Mohandas Karamchand, 1869/1948), é ampliar o marketing, por si já imenso. E as artes visuais, como mostram o filme a “Quem Quer Ser Um Milionário” e a novela global “Caminho das Índias”, acabam pegando carona, fazendo gigantesco merchandising.
Nota
(**) Filmes encontrados no Brasil.