
“Ouçam! Eu sou Papa Doc, depois de mim virá Baby Doc, depois de Baby Doc virá Junior Doc…” e encerra dizendo: “o povo achou que eram muitos Docs…” Essa foi a forma descontraída de Wyclef ensinar sobre um dos tristes episódios da história do Haiti, entre 1957 e 1986, quando o país foi violentamente governado pelosFrançois Duvalier, o Papa Doc, e seu filho Jean-Claude Duvalier, o Baby Doc, que foi destituído do governo pela pressão popular.
Agora aciono o pause na história do Haiti para voltar a falar do The Fugges, grupo criado no Brooklynque explodiu no mercado mundial com o álbum The Score, vendendo cerca de 15 milhões de cópias. O trio formado por Pras, Larin Hill e Wyclef Jean terminou com o lançamento de disco solo de cada um dos integrantes: Ghetto Supastar, The Miseducation of Lauryn Hill e The Carnival, respectivamente.
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Este último, segundo o próprio Wyclef: “surgiu como um sonho e tem muito a ver com o Brasil, pois foi baseado em meu filme favorito, Black Orpheus (Orfeu Negro), um filme sobre o Brasil, com a beleza de seu carnaval e o triste contraste com a pobreza dos foliões e sambistas que passam até fome para poder desfilar. As imagens desse filme, a situação do Haiti, a violência da América e a fome na África se fundiram em minha mente, formando um conceito global que está expresso no álbum."
Laryn Hill também reflete sobre seu trabalho: "Eu deixei de ser uma performer para ser eu mesma. Eu parei com esse negócio de fantasia. Fantasia é o que as pessoas querem, mas realidade é do que elas precisam."
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Camiseta "Mude de foco: dos mais ricos para os mais fodidos" Laryn Hill. A venda é revertida para crianças haitianas. |
Wyclef, nascido em 17 de outubro de 1970, iniciou na música aos 3 anos de idade, ainda no Haiti. Cresceu em um ambiente de vasta riqueza musical caribenha e participou de vários festivais populares, em que as dificuldades e tristezas de seu povo eram exorcizadas em cânticos e danças. Aos 12 anos e já morando nos EUA Wyclef estava exposto a uma nova cultura, mas percebia que os problemas dos menos favorecidos existiam em qualquer parte do mundo e que de nada valia ser um refugiado sem ser um revolucionário. O gueto não era exclusividade do Haiti e o melhor método para um negro pobre sobreviver era fazer uso de habilidades específicas, como acontecia no seu país. Enquanto estudava, Wyclef, ou Clef, como gosta de ser chamado pelos amigos, foi aperfeiçoando as rimas e os ritmos que o levariam ao estrelato.
Agora vou rebobinar e voltar um pouco no tempo, mais especificamente a 1º de janeiro de 1804 e dar o play quando o Haiti passou a ser a primeira república negra independente. Os escravos rebeldes foram capazes de derrotar as tropas de Napoleão enviadas pela França, na época a mais poderosa nação do mundo. Esta foi a única revolução antiescravista vitoriosa que a história conhece. Trata-se da mais radical revolução de escravos da história moderna, a ponto de eliminar fisicamente toda a pequena classe de senhores de terras brancos.
O fato inspirou outras lutas, como a grande Insurreição dos Malês na Bahia, em 1835. Só que ao contrário do Haiti essa luta aconteceu de forma defensiva, ganhando o nome no Brasil de quilombos.
Agora vamos avançar a história até meados de 1994 quando eu ouvia programas de rap nacional na rádio e durante a programação tocava uma música chamada Haiti de Caetano Veloso e Gilberto Gil. Eu não gostava e trocava de rádio, sem entender por que tocavam MPB no horário de rap. Do mesmo jeito que deve ter gente que não entende por que estou falando do Haiti na coluna de hip-hop. Hoje, chamo as pessoas com esse tipo de pensamento de puristas, sinto vergonha pela tamanha ignorância que tinha, pois a música Haiti não é rap, não é MPB. É música no sentido mais amplo da palavra e sendo assim não tem fronteiras.
“O Haiti é aqui
O Haiti não é aqui” Caetano Veloso e Gilberto Gil
A primeira nação livre do continente passou hoje para o último país em desenvolvimento neste mesmo continente e segue a tradição de passar o poder de golpe de Esta a golpe de Estado totalizando 33 golpes. O jornalista Kevin Pinaque morou 3 anos no Haiti diz haver uma campanha arquitetada pela imprensa prostituta, como se refere: “A imprensa retrata a oposição haitiana como (os combatentes pela liberdade) no hemisfério, enquanto alveja a (ditadura repressiva) do ex-presidente Jean-Bertrand Aristide.” E segue: “São agentes ativos na campanha dos EUA. Produzem regularmente comerciais chamando a população a (exigir seus direitos democráticos). Eis como funciona: a metrópole divulga uma fraude; as agências internacionais veiculam-na em seus serviços; então as rádios reportam-na no Haiti, sustentada pela credibilidade da imprensa internacional. Assim se completa o circuito da desinformação em favor da oposição.” Esta, segundo Kevin, foi decisiva na queda de Aristide.
Tá certo que penso que vários irmãos não conseguiram chegar até esse ponto referido no texto por verem que estou falando de uma luta internacional, preferindo deixar pra lá, dizendo que têm muitos problemas no seu dia-a-dia e vão continuar gritando eufóricos: "Viva a África!". Sem saber que o Haiti possui índices típicos dos países mais miseráveis da África, vão continuar falando sobre os quilombolas e ignorando que o Haiti é recordista em número de Aids junto ao continente africano; vão continuar falando que o rap descende dos griots sem saber quem são os Chimères (garotos maus). Vão continuar sem saber o que foi a vergonhosa guerra do Paraguai, sem saber sobre a Guerrilha do Araguaia…
“Us cara tão iludido” T.$. do Gueto
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"Corre nas veias dus pretos brasileiros, nus deixa ligeiro.
Rap é som!
E só pra lembrar aos quase todos pretos.
Não tem jeito são quase todos pretos." RZO
Meu objetivo é democratizar a informação; seja a pouca que tenho, seja a muita que podemos adquirir. Termino, então, com um bombardeio de informação que descobri no dia em que não troquei de rádio e prestei atenção na letra da canção Haiti:
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Caetano Veloso e DJ Cia do RZO |
Haiti
[Caetano Veloso e Gilberto Gil, letra de Caetano Veloso]
1993
Quando você for convidado pra subir no adro da
Fundação Casa de Jorge Amado
Pra ver do alto a fila de soldados, quase todos pretos
Dando porrada na nuca de malandros pretos
De ladrões mulatos
E outros quase brancos
Tratados como pretos
Só pra mostrar aos outros quase pretos
(E são quase todos pretos)
E aos quase brancos pobres como pretos
Como é que pretos, pobres e mulatos
E quase brancos quase pretos de tão pobres são tratados
E não importa se olhos do mundo inteiro possam
estar por um momento voltados para o largo
Onde os escravos eram castigados
E hoje um batuque, um batuque com a pureza de
meninos uniformizados
De escola secundária em dia de parada
E a grandeza épica de um povo em formação
Nos atrai, nos deslumbra e estimula
Não importa nada
Nem o traço do sobrado, nem a lente do Fantástico
Nem o disco de Paul Simon
Ninguém
Ninguém é cidadão
Se você for ver a festa do Pelô
E se você não for
Pense no Haiti
Reze pelo Haiti
O Haiti é aqui
O Haiti não é aqui
E na TV se você vir um deputado em pânico
Mal dissimulado
Diante de qualquer, mas qualquer mesmo
Qualquer qualquer
Plano de educação
Que pareça fácil
Que pareça fácil e rápido
E vá representar uma ameaça de democratização
do ensino de primeiro grau
E se esse mesmo deputado defender a adoção da pena capital
E o venerável cardeal disser que vê tanto espírito no feto
E nenhum no marginal
E se, ao furar o sinal, o velho sinal vermelho habitual
Notar um homem mijando na esquina da rua
sobre um saco brilhante de lixo do Leblon
E quando ouvir o silêncio sorridente de São Paulo diante da chacina
111 presos indefesos
Mas presos são quase todos pretos
Ou quase pretos
Ou quase brancos quase pretos de tão pobres
E pobres são como podres
E todos sabem como se tratam os pretos
E quando você for dar uma volta no Caribe
E quando for trepar sem camisinha
E apresentar sua participação inteligente no bloqueio a Cuba
Pense no Haiti
Reze pelo Haiti
O Haiti é aqui
O Haiti não é aqui
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