Recado Caboco

Pena que os cabocos (“caa boc”, saídos do mato) nas ilhas do Marajó, com o analfabetismo congênito herdado desde o tempo dos índios “nheengaíbas” (falantes da língua ruim) não se deram conta da estada em Belém do Pará, da senhora Irina Bokova, primeira mulher a assumir o cargo de diretora-geral da UNESCO, na VI Conferência Internacional de Educação de Adultos (CONFITEA VI), realizada entre os dias 01 e 04 do corrente.

Se eles soubessem a tempo iriam em comitiva, sob bandeira e cantoria do Glorioso, convidá-la talvez a ser madrinha do Museu do Marajó ( www.museudomarajo.com.br ) e contariam a ela muitas estórias do abandono desta gente, como de costume, sobre o saque dos tesos (sítios arqueológicos) desde o tempo do Barão de Marajó.

Quando o mais letrado disse aos outros da oportunidade perdida, uma velha curadora da tradição do matriarcado marajoara recomendou que mandassem recado à dita senhora diretora-geral lá aonde ela estivesse. Mas, como? Resmungou tio Mundico rezador e folião do Glorioso São Sebastião da Cachoeira, meio desolado: agora é tarde, Inês é morta (dizia isto por ouvir dizer, sem saber do romance do monarca português). A velha insistiu: pega orelhão e telefona ao Zé filho da comadre Otília, diz que eu tô mandando pedir a ele pra se virar e arranjar um jeito de mandar o tal recado à branca…

Sorte minha! O portal Vermelho dá chance a gente, de vez em quando, de falar da Criaturada grande de Dalcídio, o índio sutil. Mas, o melhor recado ao Brasil e à UNESCO na verdade foi dado na obra “Cultura Marajoara”, autoria da arqueóloga Denise Schaan ( www.marajoara.com ) , a marajoara que veio dos Pampas Gaúchos; excelente publicação trilíngue português, espanhol e inglês editada pelo Senac. Só me resta lembrar aos editores que ajuda deles não estará completa enquanto não enviar o livro à representação da UNESCO no Brasil para entrega expressa à diretora-geral em Paris.

Claro, tia Maroca vai me perguntar se eu falei ou não com dona Irina… Ela não entende nada de cerimonial, protocolo, relações internacionais… Tudo isto é grego para a brava gente como a carta do Padre Vieira, no século 17, escrita em bom português aos sete caciques que só falavam nheengaíba, analfabetos de pai e mãe por todas gerações. 'Mas porém” os índios “pescavam” o assunto no vento e os cabocos descendentes hoje não fazem por menos… A velha marajoara confia que o Museu do Marajó é o melhor museu do mundo, porque é “o nosso museu” inventado e fundado pelo grande amigo padre Giovanni Gallo. Como é, “antão”, que as autoridades nacionais e mundiais não “havera” de saber? Se eu me meter a contradizer tia Maria me corta a mesada de açaí e peixe frito por mais de uma semana… Matriarcado é isso!

Amigos e amigas do Museu do Marajó em rede estão a fim de sensibilizar instituições e pessoas sobre a situação periclitante do Nosso Museu e os sérios riscos para conservação da Cultura Marajoara no patrimônio nacional e mundial. Por certo a UNESCO esta sensível aos apelos de diversos países para intermediar devolução de obras de arte e peças arqueológicas tiradas indevidamente de regiões de origem. Todavia, como a larga experiência ensina, nós os cabocos não acreditamos que a periferia da periferia terá nenhum sucesso no confronto ou mesmo de conciliação nesse sentido. Já ficaríamos extremamente gratos se detentores de cerâmica marajoara estabelecessem alguma medida compensatória de responsabilidade social. No ano de 1995, o “Grupo em Defesa do Marajó – GDM” malhou em ferro frio para autoridades brasileiras sensibilizar a UNESCO a editar “catálogo internacional de Cerâmica Marajoara” para a gente marajoara identificar aonde foi parar o tesouro etnográfico que seus antepassados. O pedido entrou por um ouvido e saiu pelo outro… A gente espera compensação há 350 anos, porém o tempo arqueológico virou a nosso favor.

Segundo autor anônimo da “Notícia da Ilha Grande de Joannes dos rios e igarapés que tem na sua circumferencia, de alguns lagos que se tem descoberto e de algumas couzas curiozas”, datando dos anos 50 do século XVIII (cf. Nelson Papavero et. al. in “O Novo Éden” – Belém: Museu Paraense Emílio Goeldi, 2002, 2ª ed.) descobriu-se o teso do Pacoval do Arari “em 20 de Novembro de 1756, o qual tem o comprimento de 200 braças e 30 de largo;…”. O descobridor admirou-se muito da qualidade da banana (pacova) e da maniva (mandioca) encontrada naquela “ilha”… Todavia, muitas delas (tesos) eram habitadas por “muito Gentio da Nação Aroan, Maruanum e Sacôra [provavelmente, antepassados das atuais populações dos municípios de Chaves, Soure e Salvaterra]. Em muitas das ditas ilhas se tem achado e se acha ainda muitas Pandas, Ingassabas (que é o mesmo que Cantaros ou Potes), tudo muito bem feito, a maior parte dellas que se tem achado é debaixo da terra. Também se tem achado dentro de algumas Pandas grandes ossos de gente e caveiras, d'onde se collige ser costume daquelles índios serem sepultados daquela fórma”. (ob. cit. p. 333).

A ocupação do Marajó por fazendas de gado teve início em 1680 e até o descobrimento do Pacoval passou, aproximadamente, um século de destruição dos sítios arqueológicos. Em 1783, o naturalista Alexandre Rodrigues Ferreira depois de passar breve temporada, entre novembro e dezembro, guiado pelo inspetor da Ilha e fundador da vila de Cachoeira do rio Arari (1747), Florentino da Silveira Frade; repetiu praticamente as observações do autor anônimo na primeira “notícia” transcritas na “Notícia Histórica da Ilha Grande de Joanes, ou Marajó” (separata da “Viagem Philosophica”, Lisboa, 1783). O que nos leva a pensar que Florentino Frade é, de fato, o autor anônimo. E o Barão do Marajó, ao tratar das escavações que autorizou, em fins do século XIX, para atender ao Museu Nacional e à exposição etnográfica de Chicago (EUA), na qual foi ele o comissão do Brasil, segundo o clássico “As regiões amazônicas”, lastima os saques generalizados dos tesos incontroláveis já àquela altura.

Não falta quem, com certa razão diante das circunstâncias, inclusive do clima equatorial superúmido; diga que levar o material arqueológcico para dentro de grandes museus é mal menor. Outro chegaram a cogitar em levar sítios inteiros para abrigos museológicos… Contudo, em quarenta anos de revolução museológica com o conceito de ecomuseus podia-se inventar outra coisa além do trivial. De certa maneira foi o que sucedeu na pequena e isolada Santa Cruz do Arari, no berço da Cultura Marajoara… Quando, em 1972, por necessidade e acaso, pescadores acusados como “ladrões de gado” forneceram “cacos de índio” (fragmentos cerâmicos recolhidos de sítios arqueológicos saqueados) ao padre Giovanni Gallo que assim inventou “O Nosso Museu do Marajó”: manifesto empoderamento comunitário diverso de museus de elite…

Dois anos após o “Encontro em Defesa do Marajó” (Ponta de Pedras, 30/04/1995), o Museu Paraense Emílio Goeldi (MPEG) foi chamado a realizar levantamento de sítios arqueológicos no traçado para abertura de canal artificial do projeto Hidrovia do Marajó, para tal indicando a arqueóloga Denise Pahl Schaan, a fornecer subsídios ao EIA/RIMA para licenciamento ambiental da controvertida obra no trecho entre os rios Atuá e Anajás (ver o estudo botânicos e ecossistêmico “Campos e Florestas das bacias dos rios Atuá e Anajás”, Dário Dantas do Amaral et al., Belém: Museu Paraense Emílio Goeldi, 2007).

Começou ali a iniciação da pesquisadora com o chão de Dalcídio. O resultado, a par do conhecimento científico prenhe de sensibilidade e intuição, concluiu por um libelo contra a incúria do tempo. São, pelos menos, 12 museus que teriam recebido, segundo a pesquisadora, peças e coleções de cerâmica marajoara: American Museum of Natural History (Nova Iorque/ EUA); British Museum (Londres / Inglaterra); Musée de l'Homme de Paris (Paris / França); Musée Thomas Dobrée (Nantes / França); Museo Barbier-Mueller de Arte Precolombino (Barcelona / Espanha); Museo Chileno de Arte Precolombino (Santiago / Chile); Museu de Arqueologia e Etnologia da USP (MAE/USP); Museu de Etnografia de Genebra (Suíça); Museu de Etnografia de Gotemborg (Suécia); Museu de Pré-História e Etnografia (Luigi Pigorini), Roma / Itália; Museu Nacional do Rio de Janeiro; University Museum (Filadelfia / EUA).

Aí, pois, o recado de dona Maria com agradecimentos à Denise Schaan, para que o Brasil e o mundo não aleguem ignorância. O povo marajoara já foi se queixar ao bispo (em verdade aos dois bispos do Marajó) sobre a pobreza extrema e desse modo o Presidente Lula respondeu com o Projeto Nossa Várzea de regularização fundiária, o Plano Marajó e programa Território da Cidadania em curso. Sobre o estado falimentar do Museu do Marajó e o fim terminal dos sítios arqueológicos talvez será preciso ir ao Papa. Mas, alguém há de nos atender.

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