“Reencontrando a Felicidade”: Males das perdas
Diretor estadunidense John Cameron Mitchell une discussão sobre perda ao questionamento da crença e da eficiência da terapia para superá-la
Publicado 24/05/2011 23:20
De repente, numa sequência de “Reencontrando a Felicidade”, do estadunidense John Cameron Mitchell, a sensação de vazio e constante mal estar se impõem como traços da sociedade tecnológica. Mesmo que a tecnologia molde o cotidiano das pessoas, não retira delas suas visões e crenças. Vivem em universos paralelos, buracos, como na história em quadrinhos criada pelo adolescente Jason (Miles Teller). E traz à discussão “as diversas versões existenciais” vividas pelos personagens, numa referência às constantes reencarnações hinduístas. E a metafísica se impõe no universo tecnocientífico, do homem e da mulher do terceiro milênio.
Uma contradição e tanto para a sociedade capitalista, dita materialista, no sentido do apego ao bem material, ao consumo, ao imediatismo. Uma sociedade que, em crise, se apega ao divino, ao transcendental, para não sucumbir às perdas afetivas, mas não o vivencia em seu dia-a-dia. Enfim, vira uma muleta que não a conforta; apenas a leva ao conformismo, pois na realidade não reflete mais seus valores e suas perdas. E redunda, como sintetiza Becca (Nicole Kidman), apenas num “falatório sobre Deus”. Uma questão que sempre retorna ao longo do filme, diferenciando o vivido e o ansiado. A ponto de haver um choque entre ela e a mãe Nat (Dianne Wiest), mostrando o quanto se distanciam em sua busca de redenção.
Teólogos diriam que “Reencontrando a Felicidade” reflete sobre a ausência de Deus, numa sociedade apegada a bens materiais. No entanto, pode-se dizer que espelha mais a ausência de perspectivas reais de transformações numa sociedade capitalista agonizante, que mesmo com avanço tecnológico já não atende às ansiedades dos que dependem de sua força de trabalho. Restando o vazio e a insatisfação constante, pois as mutações sócio-tecnológicas não se traduzem em bem-estar permanente. E a sensação de queda leva a busca de arremedos para arrefecer suas agruras, ou as perdas que a vida lhes impõe.
O teatrólogo David Lindsay-Abaire, que com base em sua peça homônima, “O Buraco do Coelho”, título original do filme, escreveu o roteiro, traça vários e sutis paralelos em sua história. Mitchell tão só o seguiu, tirando da narrativa qualquer traço teatral. É um filme sobre como a família lida com a perda dos filhos, havendo um paralelo entre a de Becca e Nat. A de uma criança e a de um adulto em circunstâncias diversas. Suas crenças ou ausências delas é que ditam suas reações – as de Becca mais reflexivas, reativas, as de sua mãe internalizadas, conformistas. Mas trata também do modo visceral com que Becca trata o acontecido e de como seu companheiro Howie (Aaron Eckhart) reage a ele. Enquanto este se mantém apegado a objetos e imagens do filho, ela busca se afastar de tudo que a lembre dele.
Perda torna
Becca amarga
Daí termos uma mãe amarga, irritadiça, que trata a todos como se fossem culpados de seu infortúnio, e um pai que se debate para trazer o filho de volta através do que o simboliza. Ambos recorrem à terapia de grupo, para suportar a perda. O que Becca encontra é diferente do que esperava. Acaba se irritando com as constantes recorrências a Deus, feita pelos casais participantes. Na sua visão, a crença não trará seus filhos de volta. Numa discussão com a mãe, ela desanda num corrosivo xingamento contra Deus. O que espelha a contradição entre a busca do milagre – a ação de Deus – e a frustração com a inércia Dele para aplacar sua dor – a reencarnação do filho.
A solução deste conflito, encontrada por Lindsay-Abaire e Mitchell, é o velho mecanismo de transferência freudiano. Becca termina por apegar-se a Jason, vendo nele alguém que poderia compensar sua perda. Mais do que isto: ajudá-la a entender o que aconteceu ao filho. A metáfora para este esclarecimento é a ficção científica de Jason, baseada em “vivências pessoais”, espécie de hinduísmo centrado em “universos paralelos”. Pode ser risível, mas o que interessa é a forma como Mitchell desfaz este nó, em sequências que discutem a responsabilidade materna, as perspectivas do filho e sua inserção na sociedade. E, principalmente, a forma como Becca e Howie superam a perda para além da terapia de grupo e da crença em Deus.
“Reencontrando a Felicidade” é um pequeno filme, centrado no cotidiano de personagens classe média, de vida estabilizada, enfrentando problemas comuns a tantos outros. Embora o tema seja cáustico, Mitchell o mantém longe do melodrama rasgado, choroso, ainda que as emoções aflorem a todo instante. E o trata com sensibilidade, deixando os entrechos fluírem, sem a famosa mão do diretor (demasiados cortes, travellings, closes, personagens andando de um lado para o outro), mas sustentando o ritmo com ações paralelas, como no desfecho, sem diálogos, que muito falam sobre a aceitação das diferenças e a necessidade do perdão no dia-a-dia, e para além dele, sem ser piegas e apalermado.
“Reencontrando a Felicidade” (“Rabbit Hole”). Drama. EUA. 2011. 91 minutos. Fotografia: Frank G. De Marco. Roteiro: David Lindsay-Abaire, baseado em sua peça homônima. Diretor: John Cameron Mitchell. Elenco: Nicole Kidman, Aaron Eckhart, Dianne Wiest, Milles Teller, Tammy Blanchard.