“Relatos Selvagens”, exacerbados rancores

Em filme que expõe as entranhas de seu país, cineasta argentino Damián Szifron trata de vingança, rancor, inveja e luta de classe em altos decibéis

Na era das imagens e aparências, nada reflete o que é. Seres reais surgem como construções de uma sociedade em guerra consigo mesma. O cineasta argentino Damián Szifron configura-os como proletários, burgueses e de classe média tomados pelo rancor, inveja e vingança, capazes de paroxismos para se impor ao outro, ainda que saiam com a autoestima dilacerada.

Os seis episódios deste “Relatos Selvagens”: “Pasternak”, “As Ratazanas”, “O Mais Forte”, “A Bombinha”, “A Proposta” e “Até Que a Morte nos Separe” mesclam humor ácido, drama e fantasia. E brotam do ódio às estruturas estatais burguesas, da urgência de fazer justiça por si mesmo, da necessidade de ludibriar as autoridades e da tensão provocada por racismo e elitismo. Sem manifestar equilíbrio, compaixão ou respeito ao outro.

Muitos destas reações são engendrados por conflitos interiores, manifestados com violência extrema. (1) É o ódio manifestado pelo ex-músico Pasternak a seus desafetos e a engenhosa maneira usada para deles se vingar, numa viagem de avião; (02) a frieza com que a cozinheira trama a vingança contra o cliente mau-caráter, depois de ele maltratar a garçonete e prejudicar a família dela. Configura ódio de classe e a certeza de que a vingança não lhe pesará no cubículo da prisão.

Cozinheira perdeu a confiança no sistema

São soluções encontradas pelas camadas deserdadas pela sociedade capitalista neoliberal. Por certo, as organizações que lutam contra este sistema ainda não as alcançaram, para travarem juntos a luta política contra tais exploradores. (03) Em outro extremo está o executivo em seu carro de luxo, que se vê bloqueado pelo carro velho de outro deserdado.

Szifron revela neste episódio sua capacidade de sintetizar numa curta história vários gêneros de filmes: suspense, terror, drama. Eles surgem sutilmente ao longo da trama. Embora o moreno, em seu carro velho, tenha bloqueado o carro de luxo do executivo, a reação deste foi de elitismo, racismo e desdenho. Eles se alternam numa perseguição, luta e destruição, que às vezes leva ao riso, outra ao absurdo das situações, sempre em hiperexacerbação.

Szifron usa estreitos espaços para desenvolver a ação. Sua câmera alterna grandes planos com plano aproximado, dada à intensidade do conflito entre eles. O climax é sintomático: na falta de conciliação, ambos pagam pela mútua provocação. (04) Entretanto, é em “Bombinha” que Szifron exercita sua visão política do cotidiano dos 14 milhões de habitantes de Buenos Aires e seu entorno. Simon Fischer (Ricardo Darin) é o perito em demolições que se vê ameaçado pelas regras de trânsito e chega ao paroxismo.

Fischer tornou-se vítima do sistema

Aos poucos irrita-se com a inexistência de vagas para estacionar seu carro. E a cada infração, paga alta multa. Torna-se vítima do sistema que o estimulou a ter carro, numa megalópole onde há milhões de veículos e pouco espaço para estacionar. E não se dá conta de que armaram-lhe uma cilada. Ao invés de carro próprio, deveria usar transporte público veloz. Extinguiria regras de trânsito e multas e, melhor, ganharia em qualidade de vida, com menos poluição ambiental, etc, etc…

Szifron estrutura as sequências de modo ao espectador entender a indústria de multas e o impasse a que Fischer é levado. Seus problemas de trabalho, familiares e pessoais se acumulam levando-o ao limite. Desta vez elevado a milhares de megatons. É neste tipo de episódio que o cinema expande sua visão, combinando diversão e política em alto nível. Fischer é o cidadão classe média cujo carro é sua extensão e símbolo de status.

(05) O problema vivido pelo burguês Maurício é de outra natureza. É obrigado a se virar, depois de grave problema causado pelo filho. E se vê cercado por abutres de diversos matizes, cada um querendo valer-se da situação para arrancar dele milhões de dólares. Chega ao ponto que, para retomar o controle da situação, precisa ceder, ainda que em seus "termos”. Esqueceu, porém, da massa e da maneira como ela hoje resolve seus problemas, por descrer da Justiça.

Szifron remete o espectador ao episódio 2 e ao diretor alemão Fritz Lang (1890/1976), de “Fúria” (1936), com muito mais simbolismo e contundência. O disparo que ecoa atinge todo o sistema, inclusive o Estado burguês. Sedentas de Justiça, as massas têm, neste caso, seus próprios métodos. Sem receio de punir culpados ou manipulados. (06) Seu clima contrasta com o do casamento da burguesa Romina (Rita Cortese), regado a champanhe e música ao vivo em luxuoso salão.

A exemplo de “Festa de Família” (1998), do dinamarquês Thomas Vinterberg, seu ritual desanda em ciúme, “barraco” e exposição das fraquezas dela e do noivo Ariel. A burguesia vive suas contradições como se apenas a ela dissesse respeito. Romina numa dilacerante vingança se expõe sem temor de ver ruir seu castelo. Sua decadência projeta-se exatamente neste ardil egoísta. É sua maneira de ambicionar a eternidade e se frustrar pois o céu também é seletivo.

Relatos Selvagens. (Relatos Salvages). Comédia/Drama/Suspense. Argentina/Espanha. 2014. 120 minutos. Música: Gustavo Santaolalla. Montagem: Damián Szifron/ Pablo Barbieri, Fotografia: Javier Juliá. Elenco: Ricardo Darin, Rita Cortese, Oscar Martinez.


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