Repressão e fundações nos campi : polícia para quem precisa
A criminalização dos movimentos sociais e políticos pelo Estado burguês no Brasil faz parte da história republicana. Ela acompanha a luta de classes em nosso país.
Publicado 11/12/2007 20:25
Erram aqueles que a restringem apenas para determinados períodos como a Primeira República pré-1930, o Estado Novo e a Ditadura Civil-Militar pós-1964.
Sem-terras, sem-tetos, sindicalismo rural e urbano, mulheres, negros, indígenas, ecologistas, militantes contra discriminação de sexo, etnia e de gênero, integrantes de partidos e movimentos de esquerda, entre tantos outros tipos de movimentos, têm sido alvo de medidas repressivas de baixa e alta intensidade, seja com práticas diversas de violência, seja com espancamentos, detenções e prisões, exílios ou assassinatos.
Mais recentemente a repressão vem tomando conta dos campi das universidades brasileiras. Para entender os atuais movimentos sociais em torno da educação, é necessário perceber, como indica Maria da Glória Gohn, que as políticas governamentais, têm conferido às “escolas atributos que ultrapassam sua dimensão de ensino/aprendizagem para se transformarem em espaços de socialização e de prestação de serviços públicos”. Por outro lado, a autora diz que, “assim como o papel que a educação passou a ter no novo paradigma do mundo do trabalho”, desde 1995, “o governo federal tem elaborado programas e diretrizes nacionais que têm provocado transformações profundas, do ponto de vista organizacional, nos diferentes níveis da educação brasileira”.[1]
Nas universidades privadas, sobretudo com a sua supervalorização, no governo Fernando Henrique, o fortalecimento dos movimentos estudantis se deu em reação aos constantes aumentos de mensalidades e a pouca valorização do tripé ensino-pesquisa-extensão, pois, com raras exceções, estas instituições têm sido marcadas como verdadeiros “escolões de terceiro grau”.
Em São Paulo, a polícia militar está tendo “passe livre” para atuar na repressão no interior dos campi. Recentemente, em 13 de setembro, após o anúncio de aumento abusivo das mensalidades para 2008 (com índices de reajuste anunciados variam de 8% a 126%), estudantes da Fundação Santo André (FSA), no ABC paulista, resolveram, em assembléia, ocupar a reitoria, com cerca de 400 pessoas. A Tropa de Choque da Polícia Militar foi solicitada, entrando na sala ocupada, lançando bombas de gás lacrimogêneo e de “efeito moral”, utilizando tiros de bala de borracha e cassetetes, resultando em cerca de dez estudantes detidos e 15 feridos, um deles com estilhaços de bomba no abdômen. Aos alunos, aqueles que sustentam este tipo de instituição de ensino, não restou outra alternativa senão a greve.
Em agosto de 2007, policiais da tropa de choque da Polícia Militar já haviam agido na Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, no Largo São Francisco, onde cerca de 400 manifestantes ocupavam a sala dos estudantes, em manifestação dentro da Semana de Jornada de Lutas, em movimento nacional promovido por inúmeras entidades, como a União Nacional dos Estudantes (UNE) e o Movimento dos Sem-Terra, pela melhoria do ensino. Depois de solicitação do diretor da faculdade, a polícia militar chegou ao local, retirou os ocupantes do prédio e obrigou-os a ficarem sentados no chão. Seu “crime” era a reivindicação da erradicação do analfabetismo, o aumento de vagas em universidades públicas e o controle do ensino privado. A polícia levou cerca de 220 pessoas para a delegacia, fichando todas elas.
As ações de policiais militares no interior das universidades em São Paulo e outras forças de repressão eram o prenúncio de outras que ocorreram de lá para cá em outros campi.[2]
Por ocasião da votação do Programa de Apoio a Planos de Reestruturação e Expansão das Universidades Federais (REUNI), várias universidades federais tiveram prédios guardados, seja pela polícia federal, seja por policiais militares. Independente do conteúdo divergente que o REUNI tem provocado na comunidade acadêmica e na sociedade, é preocupante que, 22 anos após o fim da Ditadura Militar, tenhamos a necessidade de ocupação policial nas universidades públicas, a fim de “garantia da ordem” para votação de adesão das instituições em programas governamentais.
Em Santa Maria, Rio Grande do Sul, em novembro do corrente, não bastasse o aparato repressivo em si, feito pela Polícia Federal e pelo Batalhão de Operações Especiais (BOE) da Brigada Militar, o DCE, vários diretórios acadêmicos, correntes diversas do movimento estudantil e a Seção Sindical dos Docentes da UFSM foram alvo de um “interdito proibitório” oriundo da Administração da Universidade e acatado pela Justiça Federal, sob pena de multa diária de 10 mil reais, caso fossem ocupados o prédio da reitoria, a entrada do campus ou qualquer outro prédio visando o impedimento da votação da adesão ou não ao REUNI.
Em um documento que buscou jurisprudência em outras ações judiciais, em especial que atingiram o MST, impedindo o avanço de suas marchas, estudantes e professores foram criminalizados pela Justiça Federal.
Arbitrário ainda foi o ato, quando nenhum dos supostos momentos deliberativos citados no “interdito” haviam decidido, seja em Conselho dos Diretórios Acadêmicos, seja em Assembléias Docentes, por qualquer ocupação de reitoria. Mais grave ainda foi o enquadramento destas entidades num inexistente “Movimento Nacional de Ocupação de Reitorias contra o REUNI”, no âmbito da UFSM. Porém, o excepcional foi a criação de uma peça jurídica, falseada em seus fatos, que alude para a criminalização dos estudantes e docentes. Numa espécie de minority report[3] universitário piorado, pois os panfletos divulgados pelos estudantes e o pedido de vistas regimental sobre a discussão do REUNI, apenas objetivava fazer o que a administração da UFSM não fizera: mais tempo, transparência e publicização do debate para a adesão ou não ao Programa.
Que triste a universidade pública que condena seus professores e estudantes por a defenderem, possibilitando o acesso a novos cursos e o aumento de vagas naqueles já existentes sem perder a qualidade e o caráter público e estatal do ensino, da pesquisa e da extensão.
Enquanto a criminalização dos movimentos sociais e políticos é antiga no Brasil, a privatização das universidades públicas e estatais é processo bem mais recente, até porque a Universidade tem uma curta história em nossa pátria. No início dos anos 1990, muitos de nós ingênuos, talvez, nos iludimos, achando que o neoliberalismo e o mercado entrariam nas universidades acima referidas através do pagamento de mensalidades.
A estratégia foi mais sutil: sucateamento dos serviços prestados; não atualização das bibliotecas e laboratórios; precarização da atividade docente e funcional, através da não-reposição de vagas de aposentados e falecidos; institucionalização da figura do professor-substituto; aprofundamento da terceirização; arrocho dos salários das categorias, etc.. Assim, as universidades abriram as portas para a busca individual de solução de problemas econômicos para seus servidores para além das fontes salariais.
Além das bolsas oriundas de projetos, muitos deles de duvidoso sentido público, as instituições públicas de ensino superior passaram a utilizar as fundações de apoio como canal para a privatização dos espaços e projetos universitários, bem como, agora se percebe bem, também como vias de desvios de recursos públicos.
Em Santa Maria, o Ministério Público e a Polícia Federal, através de diversas ações, tornaram conhecidas as denúncias de prestações irregulares de contas de projetos ou de desvios de recursos públicos via projetos gerenciados por duas dessas fundações: a FATEC e a FUNDAE. Envolvendo INEP e DETRAN-RS, há a suspeição de que milhões de reais tenham sido desviados para particulares. Ainda aparece sob suspeição pública, divulgada pela imprensa local, outros projetos e serviços que envolvem ANATEL, produção de softwares para prefeituras, emendas parlamentares para a UFSM.
A ofensiva neoliberal possibilitou que, especialmente, através destas fundações, se aprofundasse a privatização das universidades públicas brasileiras, nas quais os interesses privados de corporações nacionais e multinacionais chegam a “lotear” laboratórios de pesquisa para seus fins particulares. Na UFSM, chegou a tramitar no Conselho Universitário, durante certo tempo, uma minuta de convênio na qual os signatários (Instituição e empresa privada) não poderiam divulgar publicamente os resultados de pesquisas, mesmo que fossem oriundos de dissertações e teses, se uma das partes não concordasse.
Equivocam-se aqueles que, diante deste quadro, consideram a sociedade brasileira como autoritária e corrupta. Na verdade, o que temos é uma classe dominante autoritária que se instrumentaliza do aparato de repressão do Estado para impedir reivindicações mínimas de democracia e de acesso a direitos sociais ou demandas históricas ainda não concretizadas como igualdade social, acesso universal à educação, moradia, alimentação, terra. Na verdade, temos um Estado, inclusive através das universidades públicas, a serviço dessas classes, que pensa a ciência e a tecnologia não através de um projeto de nação, mas sim como caminho de aferição de lucros para poucos.
Triste país é o nosso que ainda mantém em suas delegacias práticas de tortura oriundas de períodos ditatoriais! Que triste país ainda mantém nos espaços do ensino e da pesquisa a polícia para combater a divergência, numa espécie de pré-crime, condenando previamente estudantes, professores e técnico-administrativos por delito de idéia,[4] enquanto a privatização da universidade pública continua por dentro, especialmente através de projeto criados e desenvolvidos dentro das Fundações de Apoio e outras formas das chamadas parcerias público-privadas! Não deveria ser condenada a corrupção no interior de nossas instituições de ensino superior e as práticas que a levam para a privatização?[5] Sobretudo, quanto tem um Governo Federal que, em boa parte, tem em seus quadros ex-militantes oriundos dos movimentos sociais e políticos. Mais grave ainda quando, na conjuntura mundial, temos um governo americano que adota a expressão “pré-crime” como jargão da prevenção “anti-terrorista”.
Nestes momentos de criminalização dos movimentos sociais que defendem uma universidade realmente pública, gratuita e de qualidade, estatal e socialmente referenciada, que inverta o caminho das privatizações e responsabilize jurídica e criminalmente aqueles que a utilizam para desvios de recursos e para benesses pessoais, nada mais significativo do que lembrar da letra da música: Polícia! Para quem precisa! Polícia! Para quem precisa de polícia.[6]
Notas
[1] Disponível em http://www.ufmt.br/revista/arquivo/rev19/gohn_1.htm. Acesso em 09/12/2007.
[2] Por ocasião de votação do REUNI, várias universidades tiveram forte aparato de segurança em seus campi, como na Universidade Federal de Pernambuco – UFPE, na Universidade Federal de Juiz de Fora – UFJF. Além disso, na Fundação Universidade Federal de Rondônia – UNIR, o CONSUNI só aprovou a adesão ao Programa após se reunir dentro da base aérea de Porto Velho, pois a comunidade acadêmica protestava no prédio da reitoria.
[3] No filme Minority report – a nova lei, dirigido por Steven Spielberg, a partir da obra ficcional de Philip K.Dick, numa estória que se passa em 2054, há um sistema pré-crime que permite que estes sejam previstos com precisão, pois quando a pessoa pensa em executá-lo o aparato de repressão age previamente, prendendo o futuro criminoso, o que faz com que a taxa de assassinatos caia a zero. Na ficção, através do Departamento de Pré-Crime de Washington, se supõe que a tecnologia, aliada à vidência paranormal de três pré-cogs, ter-se-ia encontrado uma maneira de mapear o inconsciente e, com isso, evitar que os crimes sejam cometidos, enquanto o seu autor é preso, julgado e condenado sem ter cometido crime algum.
[4] Lúcia Stumpf., atual presidente da UNE, disse que é comum a utilização da polícia ou de seguranças particulares para reprimir movimentos estudantis em instituições privadas. Também argumentou que “a novidade é isso ocorrer em universidades públicas, que foram por muito tempo espaços resguardados de democracia, e que agora são invadidos pela polícia”, Declaração feita na Comissão de Direitos Humanos e Minorias, que realizou audiência pública sobre a polícia nas universidades. em 6 de dezembro do corrente.
Informação disponível em http://www.vermelho.org.br/base.asp?texto=29513
[5] Será mera coincidência que o “pré-crime” aos movimentos sociais, uma perigosa ante-sala de sociedades fascistas para evitar que os sujeitos históricos sejam gestores de seu futuro, assim como o Minority Report que condena previamente os futuros assassinatos, não se manifeste com tanta veemência prévia sobre as denúncias de corrupção no interior do Estado brasileiro, em especial dentro das universidades públicas? Da mesma forma, e de maneira hipócrita, quando se condena um garoto que mata outro por um tênis de marca, quando não se condena o bombardeio de propaganda da sociedade consumista que induz para a obtenção do objeto de consumo a qualquer custo?
[6] Trecho da música Polícia (1986) de Tony Bellotto, interpretada pela banda Titãs.