Retratos do Brasil

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Há homens que nascem para ser fortes como rochas; o Brasil tem alguns com este perfil: José Américo, da Paraíba, Tancredo Neves das Minas Gerais. Teotônio Vilela das Alagoas. Levam em seu espírito indomável a força da terra. José Américo, conhecido como homem da areia, tinha alma de ferro. Teotônio, sonhador desde menino, quando viu a morte de perto, tornou-se mais vivo, em sua saúde civil, do que o fora antes do mau encontro com o câncer. E mesmo indignado com as velhas estruturas da injustiça, sentiu e falou que há uma pátria a ser amada e cuidada, e um povo a ser despertado para construir dias menos ingratos, e a justiça solidária em que merece viver. Tancredo morreu tarde ou cedo, mas como Juscelino Kubstchek, não conheceu o sentimento do medo.

A contrapelo da gravidade dos instantes decisivos da política, tivemos em Chacrinha o palhaço animador de auditório, “velho guerreiro”, como é saudado na música de Gilberto Gil. Sem as tardes com o Chacrinha a alegria não vinha. O povo se acostumou aos seus bordões estranhos, muitas vezes sem sentido, ou de duplo sentido, com leve acento pornográfico: “”Alô Raimunda!”. E o jingle de abertura: “Oh! Terezinha! Oh! Terezinha! É um barato o cassino do Chacrinha!”. “Alô alô seu Inácio, faça o que eu digo mas não faça o que eu faço!”. Quem não se comunica se trumbica: a frase foi estudada em faculdades de comunicação – e foi destrinchada em papos cabeça de intelectuais. De fato, quem não se comunicou se trombicou. Muita gente se escafedeu em sua incomunicação. Por anos a fio, com suas dançarinas escolhidas a dedo, intituladas de chacretes, com sua alegria viva e popular, com rompantes de Godard, ele veio para confundir, e não para explicar.

Veio do nordeste a mais antiga alegria brasileira a animar auditórios no Rio maravilha – seja pela voz maravilhosa de artistas saudosos, ou nas figuras caricatas do animador de auditório, a buzinar cantores desafinados. Assim também na arte do canto, com dois Luizes geniais – Gonzagão e Vieira, depois Dominguinhos, Fagner, José e Elba Ramalho, trazendo uma poesia nova, extraída das sensibilidade do cancioneiro nordestinado. Na literatura, com Graciliano Ramos, José Lins do Rego, Josué Montello e Rachel de Queiroz. Até a estranha Clarice Lispector, que viveu sua infância no Recife de Manuel Bandeira, mas foi fazer carreira no Rio de Janeiro, para ser escritora universal, sem geografia ou paisagem que não fosse a da alma.

Quase tudo maravilhoso no Rio maravilha veio das paisagens do nordeste ou do norte – no último caso, com Thiago de Mello, com sua poesia libertária e engajada. Do Recife, com as pontes da Veneza brasileira, a falar da vida severina dos sobreviventes da caatinga, veio João Cabral de Mello Neto. Também das pontes e becos recifenses vem um engenheiro que não deu certo, de fracos pulmões, a precisar de pneumotórax e de um tango argentino para a iminente morte. Que, mesmo cortejada em poesia, demorou para chegar ao solteirão empedernido. Nisto Manuel não dei bandeira, e se fez estrela da vida inteira.

Para não dizerem que não falei da Bahia de todos os santos, lembro Jorge Amado, com seu cacau, suor, e o carnaval da luxúria brejeira de Gabriela Cravo e Canela – vindo depois um retrato em branco e preto do povo brasileiro, traçado pelo talento de João Ubaldo Ribeiro. À parte isto, não esquecer o grande sertão:veredas, um retrato universal do sertão que na alma de todo vivente de lugar onde viver é sempre perigoso.

Falar nas Minas Gerais é lembrar do anjo gauche de Itabira, noventa de ferro nas calças, quase sem por cento de ferro nas almas, a ponto de chegar a indagar: “E agora, José/o povo sumiu/a noite esfriou/o dia não veio/não veio a utopia/e tudo acabou/e agora, você?/Você que é sem nome/que zomba dos outros/você que faz versos/que ama, protesta/ e agora, José?”. Dando os trâmites por findos, vou encerrando estes dizeres, temendo a desmemoria/sendo certo o esquecimento, perante a vastidão de tudo certo, a escorrer pelas linhas tortas do existir humano.

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