Sebastião Nunes: Poesia, conto, teatro, romance e crônica

Eu tinha 20 anos quando ganhei o primeiro concurso literário, de crônica. Patrocinado por uma drogaria de BH, era sobre o Dia das Mães e teve 8.000 concorrentes. Me lembro até hoje do título: "Mamãe, bolota e eu". Recebi o prêmio na velha TV Itacolomi, com direito a reportagem e foto em jornal.

A grana, 10 mil não sei o quê (cruzeiros, suponho), deu pra comprar um rádio moderníssimo – sinal de que era boa. E o prêmio me valeu também, na agência de publicidade em que acabava de entrar, dois outros: um dicionário Oxford inglês-inglês, que tenho até hoje, velhinho e amarelado, além da promoção de artefinalista a redator.

O segundo e último concurso, com vitória dupla em conto e poesia, veio seis anos depois, na Faculdade de Direito da UFMG, quando me tornei definitivamente "famoso" entre meus colegas aprendizes de escritor. Depois disso, nunca mais. Enveredei pelo que se chama experimentação, e nessa área não tem prêmio, no máximo olhares de banda, fofocas, piadas, rasteiras e socos metafóricos. Além disso, descobri que concurso literário é mais viciado que roleta de vigarista: todas as cartas são marcadas, antes, durante ou – impossível? Nada! – até depois.

TEATRO, CONTO, POESIA
Fascinado pelo teatro de Beckett e Ionesco, passei noites e noites escrevendo numa velha Remington em minha mesa na agência. Quando todos iam embora, eu, morador da pensão em frente, jantava e voltava pra batucar horas intermináveis numa peça que nunca deu certo – e morreu na cesta de lixo. Enquanto outros namoravam, bebiam, viviam a vida, como se diz, eu dedicava meu tempo a dar vida a personagens que teimavam em continuar mortos. Até que desisti e mudei pra casa do senhor Conto, aquele velho chato e metido a besta de quem Mário de Andrade disse que "conto é tudo aquilo que a gente chama de conto", ou quase isso. Resolvida a questão conceitual, restava resolver a estilística. Foi quando empaquei, que nem burro diante de mula sem cabeça. E não arredei pé até desistir e mudar pra casa de dona Poesia.

Só que dona Poesia, nesse tempo, sofria de esquizofrenia, sendo habitada por três personalidades conflitantes: dona Poesia Concreta, dona Poesia Neo-Concreta e dona Poesia Acadêmica. Cada uma torcia o nariz pra outra, vivendo às turras. A turma do Neo-Concretismo dizia que a Poesia Concreta sofria de prisão de ventre. Esta, por sua vez, afirmava ser diarreia a doença da Poesia Neo-Concreta. Enquanto isso, dona Poesia Acadêmica tirava, não ouro, como queria Drummond, mas meleca do nariz. Meleca em forma de soneto, ode, quadra etc. As outras senhoras, Concreta e Neo-Concreta? Nem tchum! Brigavam entre elas e desprezavam a irmã acadêmica.

TORTO NO MEU CANTO
Promovido (ou rebaixado) a poeta, fiquei só assuntando, sem elogiar Fulano, Sicrano ou Beltrano, de modo que eles também não me elogiavam. Elas por elas. Naquele tempo, ao contrário de hoje, quando todos se confraternizam como irmãos, se não siameses, pelo menos paquistaneses, ou você dizia que eu era ótimo, recebendo em troca o título de magnífico, ou não dizia nada, ao que eu nada dizia. Era dando que se recebia, ou era recebendo que se dava, tanto faz. Mas sem propina intelectual ninguém ia pra frente, exceto pobre, aquele mesmo da piada, o da topada. E ainda dizem que nada se faz hoje em dia sem propina. Pois sim. Só mudou o tilintar da moeda.

Torto e calado era, torto e calado fiquei. Tive 250 leitores, que foram morrendo e sendo substituídos por recém-chegados, de modo que mantenho meus 250 leitores. Ora, convenhamos que está de bom tamanho, ainda mais se levarmos em conta que poeta e capim se acham em todo jardim.

FICÇÃO E CRÔNICA
De saco cheio de poesia (e ela de mim), me tornei prosador, mas pra não perder a vaga de experimentalista, dediquei-me à prosa experimental, pouquíssimo diferente da poesia experimental, que não se acha em qualquer quintal. Publiquei meia dúzia de livros (inclusive infanto-juvenis), sem aumentar nem diminuir meus leitores que, desconfio, liam e leem mais por amizade que por desfastio, se é que me leem.
E foi então que me tornei cronista, quase por acaso, convidado por Antonio Siúves, então editor do Magazine, aqui no O TEMPO, sucedido por Michele Borges da Costa e Silvana Mascagna, que, imagino, pensaram assim: "Se esse maluco já está aqui, e não dá muito trabalho com suas maluquices, vamos deixar ele quieto". Como de fato deixaram. E quer saber de uma coisa? Continua ótimo.

ELOGIO DO GÊNERO CRÔNICA
Meu amigo Manoel Lobato, colega de crônica, jornal e literatura, se derrete de gosto quando recebe carta ou telefonema dos leitores de suas histórias. O mesmo faço eu, com uma vantagem: desabafo. A vida pesa mais do que a cruz de Cristo? Sapeco uma crônica queixosa – e a cruz levita. Me pisaram no calo literário? Fabrico outra crônica dando chutes na canela do(s) desaforado(s). Tudo vai bem, céu azul, filhos sadios, a graninha chegando espichada até o fim do mês? Salta uma crônica cor-de-rosa, alegre e cantarolante, que nenhum romantismo resiste à alegria, os lamurientos radicais que me perdoem.

E por aí vai. A grande vantagem da crônica jornalística é que você não tem de esperar meses e anos pela publicação, se é que publica algum dia. Toda semana lá está ela, cheia de graça, ou de tristeza, e nunca falta assunto. Esta semana, por exemplo, eu tinha tantos que resolvi deixar todos de lado, preferindo elogiar essa minha fonte de prazer e conversa fiada, de invenção, experimentação, ironia e sátira.

Numa crônica cabe tudo e muito mais. Também pode ser vazia de conteúdo, de forma e até de sentido, como esta, escrita por escrever, apenas pelo mais sadio de todos os exercícios literários: o de experimentar, de notar como fluem as palavras a partir do nada, de criar em cima de coisa alguma. Deve ter sido mais ou menos assim que Deus se sentiu, quando soprou o barro de Adão. E, em seguida, quando tomou sua (dele, Adão) costela e transformou em Eva. O diabo foi ter metido a cobra no meio.

Publicado em: 01/11/2009, no jornal O Tempo