Roberto Carlos e a Ditadura
As datas, os aniversários, têm um poder evocativo muito forte. Esta semana me veio de súbito uma pergunta: que música seria mais representativa do golpe militar de 64? Quais canções, que músico seria mais representativo daqueles anos inaugurados em um primeiro de abril?
Publicado 31/03/2011 11:27
Num estalo me veio que Roberto Carlos deve ter sido o compositor mais representativo da ditadura. Não sei se num curto espaço conseguirei ser claro. Mas tento. Os mais velhos sabem que a lembrança daqueles anos muito tem a ver com os rádios, em todos os lugares, tocando
“De que vale o céu azul e o sol sempre a brilhar
se você não vem e eu estou a lhe esperar
só tenho você no meu pensamento
e a sua ausência é todo meu tormento
quero que você me aqueça nesse inverno
e que tudo mais vá pro inferno”
Quando Roberto Carlos explodiu os rádios do Brasil, ele cresceu em um programa que arrebentou em 65. O programa Jovem Guarda se opunha ao O Fino da Bossa, com Elis. Enquanto O Fino da Bossa fazia uma ponte entre os compositores da velha guarda do samba e os compositores de esquerda, o Jovem Guarda…
“Eu vou contar pra todos a história de um rapaz
que tinha há muito tempo a fama de ser mau..”
“O Rei, o Rei não tem culpa…”, diz-nos um senhor encanecido, ex-jovem guarda (e como envelheceu a jovem guarda!). “O Rei não tem culpa…”. Sim, compreendemos: quem assim nos fala quer apenas dizer, Roberto Carlos não teve culpa de fazer o medíocre, de falar aos corações da massa jovem daqueles anos. À juventude alienada, mas juventude de peso, em número, que ganha sempre da minoria de jovens estudiosos. Que mal havia em falar para a sensibilidade embrutecida mais ampla? É claro que ele não teve culpa de macaquear a revolução musical dos Beatles em versões bárbaras, em caricaturas dos cabelos longos, alisados a ferro e banha, para lisos ficarem como os dos jovens de Liverpool.
Mas é sintomático nele a passagem de cantor da juventude para o “romântico”. Essa passagem se deu na medida em que os jovens de todo o mundo deixaram de ser apenas um mercado de calças Lee e Coca-Cola, e passaram a movimentos contra a guerra do Vietnã, até mesmo em festivais de rock, como em Woodstock. Ou, se quiserem numa versão mais brasileira, o Rei Roberto se torna um senhor “romântico” na medida em que as botas militares pisam com mais força a vida brasileira. Ora, nesses angustiantes anos o que compõe o jovem, o ex-jovem, que um dia desejou que tudo mais fosse para o inferno? – Eu te amo, eu te amo, eu te amo…
É claro que a passagem do Roberto Carlos Jovem Guarda para o senhor “romântico” não se deu pelo envelhecimento do seu público. De 1965 a 1970 correm apenas 5 anos. O envelhecimento é outro. Nesses 5 correm sangue e raiva da ditadura militar, no Brasil, e crescimento da revolta do público “jovem”, no mundo. Enquanto explodem conflitos, a canção de Roberto Carlos que toca nos rádios de todo o Brasil é “Vista a roupa, meu bem” (e vamos nos casar). Se fizéssemos um gráfico, se projetássemos curvas de repressão política e de “romantismo” de Roberto Carlos, veríamos que o ápice das duas curvas é seu ponto de encontro.
Enfim, o namoro do Rei Roberto Carlos com o regime não foi um breve piscar de olhos, um flerte, um aceno à distância. O Rei não compôs só a música permitida naqueles anos de proibição. O Rei não foi só o “jovem” bem-comportado, que não pisava na grama, porque assim lhe ordenavam. Ele não foi apenas o homem livre que somente fazia o que o regime mandava. Não. Roberto Carlos foi capaz de compor pérolas, diamantes, que levantavam o mundo ordenado pelo regime. Ora, enquanto jovens estudantes eram fuzilados e caçados, enquanto na televisão, nas telas dos cinemas, exibia-se a brilhante propaganda “Brasil, ame-o ou deixe-o”, o que fez o nosso Rei? Irrompeu com uma canção que era um hino, um gospel de corações ocos, um som sem fúria de negros norte-americanos. Ora, ora, o Rei ora: “Jesus Cristo, Jesus Cristo, eu estou aqui”.
Os brasileiros executados sob tortura não estavam com Jesus. Nem Jesus com eles.