Saudades da Terra

Conflito, colonialismo e devastação na Amazônia [2]

A primitiva saudade

A primeira de nossas saudades é o demônio da consciência, filha do Inconsciente (este mundo sem fundo). Sentimento do vasto mundo sem solução do poeta Carlos Drummond de Andrade. Melancólica lembrança das muitas infâncias perdidas da Humanidade. Pressentimento de perdição do planeta, para sempre… Despertar do indivíduo que se torna consciente de ser singular e coletivo ao mesmo tempo.

Esse angustiado mensageiro de “deuses” ou profeta do caos, poeta revolucionário, pensador iluminado ou louco se tornará estranho e odiado na própria terra. Nós nunca saberemos, exatamente, como foi a vida no berço da humanidade tal como ela foi de verdade. Só a poderosa imaginação criadora pintará um pálido cenário, que se perde entre brumas, para evocar os começos do mundo, quando estrelas, plantas, homens e animais pertenceram a uma única família.

O fundo mágico e terceira margem do rio onde o bicho-homem veio à tona antes que ele tivesse fala para se comunicar com os outros e se converter pelo verbo em verdadeiro humano. O  primitivo “deus criança” sentia ânsia criadora como o homem moderno inseparável de sua própria sombra. O que levou os primeiros coletores e caçadores errantes a gerar rudimentos do espírito  rabiscando sua sagrada passagem na pedra virgem de cavernas com pinturas rupestres retratando natureza virgem e visões de outros mundos.

Saudade: o parto da palavra tinha que ser em Portugal

Nenhum povo teve mais consideração pelo sentimento de saudade como o português. E tanto fez por merecer que, na virada do século XX, o Saudosismo veio à luz como um movimento seminal… – A saudade na cultura portuguesa é patrimônio universal inigualável, cuja linguagem musical é o Fado: uma catedral virtual revestida de saudade cósmica que dá alma à natureza. Saudade é – materialização do espírito. Ou espiritualização da matéria, com o poeta Fernando Pessoa a exaltar o sebastianismo. A obra antropoética de Pessoa faz da verdade uma máscara brilhante que oculta uma metáfora e cada máscara que ele faz é um jogo onde a verdade se oculta. O poeta é um fingidor que leva a saudade a extremos mágicos para  declarar que os saudosistas são arquitetos de civilização futura, que o cristianismo libertado de seus fantasmas corre livre com o menino deus, que há em cada homem, para ir além da fronteira do panteísmo em busca de um sentido original à  vida resgatada do absurdo.

Dessa saudade congênita dos nautas lusíadas, o poeta propõe uma odisseia existencial em busca de uma Índia nova – que não existe em terras e mares nunca dantes navegados: nisto, sem Pessoa desconfiar um til, sua lírica honra a desconhecida demanda do Bom Selvagem na saga mítica da “Terra sem mal”. As naus da frota poética são construídas da mesma matéria com que os sonhos são feitos. Maravilha e paradoxo! Por necessidade e acaso, naves lusas vindas do mar Oceano transportaram (em contrabando invisível a olhos catequistas) o mito selvagem rio acima… A língua de Camões, imperadora no “rio Babel”, leva no retorno da terra dos tapuias as esperanças de Portugal e mais povos de todas as diásporas para além mar.

Bravos não fogem nem buscam a Morte, mas amam a vida sobretudo.

Apesar da carreira que levamos e tão longe que se possa ir, sempre voltamos ao ponto de partida transformados em heróis: cada um a seu modo, secretamente, possui uma Ítaca onde Penélope espera pelo formidável Ulisses que imaginamos ser, prontos a refazer a lenda e revitalizar a antiga metáfora. Na pressa moderna, nós não nos damos conta do enormíssimo genocídio que praticamos em guerra permanente contra “inimigos” fatais, em meio à multidão de deuses mortos e heróis em decomposição…

A vida passa em ondas na esteira dos cometas de volta ao pó das origens: todavia, tudo que foi um dia será outra coisa na eterna maré até se extinguir a grande combustão cósmica para dar lugar ao obscuro caos que regenera a dor de tantos nascimentos, sofrimentos, gozos e sucessivas mortes. Talvez, sem nenhum proposito como a vaidade humana gostaria que fosse a fim de compensar sua insuportável pequenez.

O radioso e maravilhoso Sol – velho deus ou deusa criadora dos viventes, Guaracy dos povos tupis –  que iluminou o grande palco da comédia humana implodirá para virar um corpo opaco num novo céu escuro, frio e indiferente a esta e outras histórias ribeirinhas. Não importa a hora nem a forma que terá o fim do mundo no contínuo vir a ser das coisas. O que importa é saber viver e prolongar a vida enquanto há tempo… Tudo está atado a tudo. A abelha coleta néctar da florada guiada por raios infra-vermelhos e faz mel na colmeia, milhões de células renováveis no organismo complexo da vaca preparam leite que será queijo na mesa do rico pelas mãos calejadas do ordenhador e do artesão; o rio soturno traz cardumes à rede de pescador que dá de comer ao pobre…

Só este periclitante “eu”, como uma taquara pensante no meio da floresta agreste, é capaz de observar e compreender os outros. Achar conexões entre si mesmo e os mais. Descobrir diversas passagens entre mundos diferentes e distinguir a realidade do sonho. Um ser singular, dotado de razão e consciência, que, timidamente, assinala sua efêmera existência como um breve sopro do infinito movimento de energia da matéria eterna. O ser criado para passar e perecer na evolução das espécies em contínua adaptação a tudo e a todos, sempre em risco de extinção… 

Mas na marcha para o inevitável, enquanto pode, o mortal canta e urde sua semente  desafiando a morte como o guerreiro antropófago luta com o inimigo certo de que um dos dois há de conservar a chama viva e honrar as armas e o nome do herói morto em combate. Claro, a vida é luta renhida, viver é lutar… O terreiro e a comunidade por testemunha do sangue e da carne da vítima sagrada compartilhados no rito da eucaristia bárbara. Mais tarde, a evolução social simbolizada na missa dos cabocos em demanda não mais da mítica “Terra sem mal” buscada por seus ancestrais, mas sim da santa madre civilização. Um rito de passagem para outras renascenças e ressurreições ao longo de histórias futuras…

O velho drama de Sísifo escravo do mito acorrentado ao rito do Progresso: a arte imita a vida e a vida imita a arte… Toda aventura, por ridícula que pareça, como ir e vir da feira com mãos abanando, é uma odisseia no seio da cósmica Odisseia. Voltamos, de qualquer maneira, a velha casa da infância onde ensaiamos os primeiros passos. Ao retornar já não somos os mesmos exilados de outrora nem a casa será a mesma: e, no entanto, algo permanece.

Uma vez quando jovem, num sonho, me vi regressando a uma terra distante cercada de florestas. Havia no lugar um sítio com larga maloca silenciosa, de aspecto antigo, senti com se ali algum dia tivesse sido meu lar. Ficava numa ilha grande à beira de um rio tranquilo, por onde índios subiam o curso vagaroso em canoas a remo. Tão nítida imagem que eu podia ver gotejar a água da pá do remo do nativo mais próximo, este não se admirava de minha presença ali como se talvez eu fosse um deles. Havia paz na paisagem onírica. Eu nunca experimentei felicidade igual na vida real. Pena que despertei do sonho e não mergulhei de vez naquele eterno rio… Muito depois li depoimento de um índio processado pelo Santo Ofício (cf. Ronaldo Vainfas, “A heresia dos índios”) pelo crime de imitar Jesus Cristo para fundar igreja dissidente da santa Religião. Dizia o herege ao inquisidor: “Deus criou o homem para dormir e sonhar”. O sonho pois é a meta superior da vida dos viventes, terra de igualdade sem limites.

Não me espanta agora o fato de tantos pobres de espírito e deserdados de sonhos do paraíso selvagem buscar na alucinação das drogas a imaginação prazerosa que falta no mundo da realidade.
Freud explica? Talvez sim. Mas eu acho que será isto talvez a “saudade” do paraíso perdido em diversas diásporas: da Origem à evolução das espécies. Afinal, acredito, a Natureza sonha! É da sua natureza sonhar que é Deus e Homem ao mesmo tempo.

Às favas a “imparcial” razão! Quando se trata de coletiva e solidariamente buscar a justa felicidade de todos e de cada um (isto não exclui a boa governança natural na qual, na medida do razoável, humanos comem carne de vaca e vermes comem gente). Por isto a humanidade, filha da animalidade, inventa utopias. Que são como caminhos para realizar sonhos compartilhados. Todavia, é o indivíduo naturalizado e socializado nos lugares concretos do mundo real que dá razão aos sonhos mais felizes que muitos guardamos no coração desde a infância. Concordo com Agostinho da Silva, filósofo sebastiano sobre ser a criança imperador da utopia do “quinto império”. Este reino messiânico esperado na terra há de vir ao dia em que os adultos nunca matarem a criança que eles foram uma vez… E se a felicidade é o reino da infância, não faz sentido gastar tempo e padecer para transformar meninas e meninos alegres e felizes em gente grande idiota e infeliz. Não deveríamos reclamar por estar sempre a ir e voltar do fim aos começos do mundo: cada viagem nunca é igual a outra (a cabo da História, Vico e Marx ficariam em margens opostas? Acho que não, tudo se confunde na terceira margem do rio das amazonas).

            "Toda a alegria silenciosa de Sísifo está aí. Seu destino lhe pertence. Seu rochedo é sua    questão. Da mesma forma o homem absurdo, quando contempla o seu tormento, faz calar todos os ídolos.

            No universo subitamente restituído ao seu silêncio, elevam-se as mil pequenas vozes maravilhadas da terra. Apelos inconscientes e secretos, convites de todos os rostos, são o reverso necessário e o preço da vitória.

            Não existe sol sem sombra, e é preciso conhecer a noite. O homem absurdo diz sim e seu esforço não acaba mais. Se há um destino pessoal, não há nenhuma destinação superior ou, pelo menos, só existe uma, que ele julga fatal e desprezível.

            No mais, ele se tem como senhor de seus dias. Nesse instante sutil em que o homem se volta sobre sua vida, Sísifo, vindo de novo para seu rochedo, contempla essa sequência de atos sem nexo que se torna seu destino, criado por ele, unificado sob o olhar de sua memória e em breve selado por sua morte.

            Assim, convencido da origem toda humana de tudo o que é humano, cego que quer ver e que sabe que a noite não tem fim, ele está sempre caminhando. O rochedo continua a rolar."
(de O Mito de Sísifo – Albert Camus)

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