Sem direito a escolhas

Em filme sobre a condição feminina em país sob o domínio da teocracia, cineasta marroquina Maryam Touzani expõe os dilemas da mulher árabe

A angústia e o temor a predominar no desfecho deste “ADAM”, filme de estreia da marroquina Maryam Touzani (18/07/1980), atesta o quanto o sistema teocrático reprime as motivações da jovem Samia (Nisrin Erradi). Ela oscila entre o que fazer com seu filho recém-nascido ou simplesmente se ater aos dogmas e preceitos sob os quais foi criada. Estas imposições entranharam-se de tal forma nela que pende entre sua tendência de mãe e o medo de ser punida por ser solteira. A rígida moral da estrutura monárquica do Marrocos não lhe permite se valer de uma terceira opção.

Vê-se através desta construção dramática que Touzani e seu co-roteirista Nabil Ayouch (01/04/1969), seu companheiro na vida real, se dispuseram a expor os dilemas cotidianos enfrentados pelas mulheres marroquinas. E tecem o roteiro no qual o trio de mulheres formado pela grávida Samia, a viúva Abla (Lubna Azabal ) e sua filha Warda (Douae Belkhaouda), de oito anos, transitam pelo estreito espaço que lhes é dado pelos dogmas e preceitos teocráticos. Tudo sem mencionar ou atribuir diretamente a eles os males enfrentados pelas três mulheres em sua vida.

O que sobressai em “ADAM” é o drama humano vivido por Samia e como está condicionada pela crença e o medo de afrontá-la. A dupla Touzani/Ayouch a constroem desde as sequencias iniciais como contra- ponto a Abla. Assim a pobre e excluída grávida perambula pela Casablanca sem ter quem se compadeça de sua aflitiva situação. Enquanto isto, a viúva se esforça para sustentar a si e a filha com a venda de pão e roscas para parca freguesia. Daí aflora o tema central do filme, ou seja, o que, afinal, pesa sobre os ombros da mulher cujo “pecado” é estar gravida?

Sociedade de Casablanca rejeita a grávida Samia

A saída construída pela dupla de roteiristas e, ainda mais, por Touzani como diretora, é mostrar o quanto a sociedade marroquina de Casablanca a rejeita. Isto é feito não com expressas palavras, mas através de sucessivas recusas a seus pedidos para trabalhar. Nenhum homem ou mulher sequer se dá ao trabalho de ouvi-la direito e saber de suas razões para tal insistência. Principalmente por ser solteira e estar grávida. Um biscate apenas lhe ajudaria a sobreviver às suas próprias custas. Uma mostra de que seus compatriotas estão condicionados pelos dogmas e os preceitos teocráticos de uma monarquia constitucional.

É com o mesmo sentido que a dupla Touzani/Ayouch constrói a segunda parte do filme. Surge então o trio de mulheres, formado por Samia, Abla e a garota Warda. Cada uma a viver seus próprios dilemas. Mãe e filha sobrevivem da venda do tradicional pão rziza, na janela de sua casa. E a convivência com Abla é cada vez mais difícil, pois vê em Samia não só um incomodo por ela estar desempregada e gravida, mas por ver nela uma concorrente. Desde que a admitiu em sua casa, a jovem se mostra exímia preparadora do rziza e os fregueses logo o elogiam por sua qualidade.

As duas, ao contrário do esperado, por viverem situações de carência e solidão, não entabulam conversa ou se tornam amigas. O elo de ligação e equilíbrio entre elas é feito pela garota Warda. Num desses momentos, por sua mãe querer a toda hora livrar-se da “hospede” lhe dizendo: “Você vai embora amanhã”, ela chama atenção dela: ”Você é um monstro, não tem coração! Cria-se, deste modo forte elo entre a menina e a marginalizada. Esses laços afetivos dão o tom de humanismo e respeito ao outro neste “ADAM”. Warda só vê em Samia a amiga prestes a ter o filho.

Touzani constrói Abla não só como ríspida e autoritária

Pelo que se vê na tela, a dupla Touzani/Ayouch, ao invés de dotar sua narrativa de subtramas, prefere introduzir duas linhas dramáticas que levam o espectador a fazer leituras apropriadas de cada uma delas. Na primeira é a disputa pela qualidade da preparação do rziza e na segunda emerge a luta de classes entre as duas. I – Como dona do negócio a abrigar a desconhecida grávida, Abla não quer se ver em segundo plano; II – Samia por saber de sua superioridade como profissional na preparação do tradicional pão marroquino quer conquistar ainda mais elogios da clientela.

Prevalece aqui não o controle da casa do milionário e aristocrata (Dirk Bogarde – 1921/1999) por seu faz tudo (James Fox – 1939), como em “O Criado” (1963), de Joseph Losey (1909/1964). Touzani constrói Abla não só ríspida e autoritária, mas também desconfiada da competência de Samia. Com sua padaria na janela da cozinha em franca prosperidade e com longas filas para comprar seu rziza, ela não para de vigiá-la. O que, na verdade, o espectador vê é a criatividade e competência da grávida. Resta, assim, a inveja e a luta de classes mesmo em pequeno negócio.
As relações entre elas oscilam entre a amizade, a competição e, sobretudo, as mútuas carências. São duas mulheres sem companheiros, presas a seus próprios dilemas numa teocracia. Em algumas sequências as relações entre elas remetem às duas mulheres (Ingrid Tulin –1925/1931) e (Gunnel Lindblon – 18/12/1931) fechadas no quarto de hotel em “O Silêncio”(1963), de Ingmar Bergman (1918/2007). Cada uma com seu drama e sem poder viver sem a participação da outra. É o caso de Abla cuja vida passa a depender da grávida Samia para continuar a se sustentar.

Samia entra em conflito com suas próprias opções

Estes fios dramáticos ressaltam as carências de Abla, pois sua relação com Warda é de mãe e filha. Esta, mesmo ela não percebendo, entende o quanto a morte de seu companheiro a faz sofrer. Isto fica claro na sequência em que Warda e Samia se põem a ouvir a música que a faz lembrar-se dele. Há ligeira altercação entre ela e Samia sobre manter ou não o que a faz lembrar-se do falecido. O que termina por colocá-las em dilemas não diferentes para uma e outra. A abordagem torna-se, deste modo, intimista, centrada nos impasses e escolhas das próprias mulheres.

São nestas sequências que ficam explicitas suas razões e como elas encontram amparo uma na outra sem entrar em questões teocráticas. Constroem seus próprios caminhos e arcam com as consequências naturais nas relações amorosas, familiares, amizades e de trabalho. De outra forma, os supostos controles moral e teológico terminam por bloquear a construção de uma existência em total liberdade. Abla e Samia bem o demonstram na terceira parte de “ADAM”. A própria Abla se redescobre na bela cena em que retoma a vontade de reencontrar-se com a vida. E recupera a autoestima e se renova ao ver-se de novo livre para a paixão.

Toda a ação do filme se dá em ambientes fechados, como impõe o tema ditado pelos dogmas e preceitos. A diretora de Fotografia, Virginie Surdej r, usa filtros verdes para os interiores e deste modo o clima se torna opressivo. Sua câmera se move nos estreitos espaços da casa de Abla, levando-a a valer-se de planos aproximados. É uma câmera que se move pouco, salvo nas raras externas da narrativa. Todo tempo ela fica estática como nas sequências do parto de Samia e quando ela enfrenta o dilema de optar ou não pelo filho. Em suma as imagens de Surdey cumprem seu papel.

Desfecho final de ADAM É chocante

Na terceira parte do filme, Touzani surpreende o espectador por não se desviar de seu tema central. Samia mostra-se em aberto conflito com suas escolhas e o quanto elas influem em sua existência. Principalmente na decisão de ter o filho e agora sentir o peso dos dogmas, preceitos e controles diretos e indiretos da própria sociedade submetida à teocracia. O espectador a vê em meio às dores do parto, mas Abla teme por sua decisão. Não se trata de algo banal, a ser superado pelos anos. Pelo contrário, ele é decisivo para o que virá em sua vida nos anos vindouros.

O que está em prestes a lhe ocorrer é fruto de sua escolha e a ela cabe a decisão sobre se a leva adiante ou a abandona como se a culpasse por algo do qual ela não participou. As conversas entre ela e Abla são impactantes a ponto de o espectador ora torcer para uma, ora para outra. No meio de tais opções está o fruto da opção dela, Samia, Sozinha no quarto, é entregue às suas próprias decisões, das quais não quer, de forma alguma, abdicar. É o instante máximo em que só a ela cabe decidir sobre o futuro de seu filho, não o deixando entregue à sociedade que o rejeita.
Às sequências de choros sucedem-se às hesitações de Samia, sozinha no quarto. Ela demonstra-se inarredável em sua decisão já confiada a Abla. Nada a convence do contrário, de que será punida por ter desafiado um dos preceitos da teocracia. Qualquer atitude sua a levará a punição pois lhe cabia respeitá-lo. A gravidez não deve ser uma opção sua, pois os preceitos e dogmas já estabeleceram os ritos e a forma como é admissível. E ela não os respeitou, daí está prestes a ser punida. Só lhe basta entregar-se a quem tem autoridade para submetê-la ao ritual certo.

Trio de grandes atrizes sustenta a narrativa

Com delicadeza e a segurança de uma veterana cineasta, Touzani conduz sua narrativa sustentada pelo trio de grandes atrizes. Cada uma delas passa a impressão de que são pessoas comuns, por exercerem grande controle do personagem. O que, sem dúvida é resultado de suas experiências e muitos ensaios, como diretora. A começar pela ainda adolescente Douae Belkhaouda, como Warda. Ela passa leveza e fragilidade e ao mesmo tempo a sensação de estar consciente das atitudes da mãe e de Samia. Isto se vê quando ela explicita à amiga as razões do comportamento de sua mãe. É convincente e desde já uma grande atriz.

Mas, sem dúvida a Abla de Lubna Azabal passa a ideia de ser uma mulher ferida, solitária e ríspida, mas tem razão para isso. E sabe quando ser fria ou sedutora, como em várias sequências do filme. No entanto é Nisrin Erradi , com seu jeito de mulher comum que se impõe desde o início como a sofrida grávida. Sua interpretação no final dá a dimensão do sofrimento da grávida Samia. E está mais próxima de quem sofre para ter controle de suas escolhas ao mostrar ser capaz de ter ideias e ações fora dos dogmas teocráticos. Enfim, é uma atriz preparada para novos desafios.

É a que se destaca nos minutos finais do desfecho de “ADAM”. O espectador é tragado pelo silêncio e o medo de Samia punir a quem é inocente. Cada segundo é torturante pois sua indecisão leva-o a torcer para que ela não adie a escolha entre o presente e o futuro de quem é fruto de sua opção enquanto mãe. Seu modo de agir eleva ainda mais a tensão e o temor de o instinto materno submeter-se aos ditames terrenos e não à lucidez e o equilíbrio ditados por suas próprias decisões. Afinal, só a ela cabe neste instante ditar o futuro de seu filho e, porque não, de si mesma.

ADAM. (ADAM), Drama, Marrocos/França/Bélgica.2019. 98 minutos. Montagem: Julie Naas. Fotografia: Virginie Surdej. Roteiro: Maryam Touzani/Nabil Ayouch. Direção: Maryam Touzani. Elenco: Lubna Azabal, Nisrin Erradi, Aziz Hattab, Douae Belkhaouda. Filme indicado pelo Marrocos para representar o país no Oscar 2020.

As opiniões expostas neste artigo não refletem necessariamente a opinião do Portal Vermelho
Autor