“Senhores do Crime”: Violência Medieval

O diretor Davi Cronenberg discorre sobre rituais e códigos da “Máfia Russa” e mostra o quanto eles têm de medieval e cristão, mas não deixa de estigmatizar os russos a exemplo do que acontece com árabes, africanos e latinos

Nos filmes do canadense David Cronenberg (Spinder, Videodrome) há pouco espaço para as relações diretas; neles sempre existem signos, rituais e metáforas que terminam por inseri-los num tipo de narrativa, em que pouco importa o que se vê, pois valerá mais o como tudo se inter-relaciona para desvendar as paisagens submersas inscritas nos corpos e nas ações dos personagens. Em “Senhores do Crime” não é a história, em si linear, que conta, pelo contrário, são as camadas que vão se acumulando que revelam as contradições de um meio apegado ao ritual familiar, à indiferença ao conflito vivido pelo outro, à necessidade de preservar o poder mantido às custas de extrema violência. Estas ações assumem o caráter de normalidade, iguais às reações do russo Semyon (Armin Mueller-Stahl) ao receber a obstetra Ana (Naomi Watts) pela primeira vez, em seu restaurante. Ele se mostra terno, receptivo, alguém em quem se pode confiar, porém seu comportamento passivo causa estranheza. 


 


 


O que ele representa não surge assim de repente, virá ao longo da história, com sua naturalidade se estendendo ao ambiente por ele controlado. Um ambiente fechado, dominado por tons rubros, móveis sombrios, onde há espaço reservado ao detentor para o poder, a exemplo do trono a que não se almeja, conquista-se. Ana maravilha-se com este mundo, ao qual pertence devido às origens russas, porém não o freqüenta por ter-se integrado ao círculo dos imigrantes aculturados. No restaurante, espécie de templo; se prepara festa em homenagem à mãe de Semyon, dança-se, canta-se músicas nativas e saboreia-se iguarias, até certo ponto exóticas para ela. Há certo encanto neste meio, que Ana ainda não desvendou; dominada que está pela desconfiança, o temor de que por trás daquilo exista algo sinistro, que a decepcionará.


 


 


Diretor sobrepõe narrativas para impulsionar a ação


 


                


Ao se tornar uma espécie de investigadora do passado de Maria (Shannon-Fleur Roux), que ao morrer deixou uma criança e um diário onde narra as perseguições de que foi vítima, ela retoma suas raízes. Aquela é sua cultura, diferente da que absorveu ao se fixar nos espaços frios e retangulares do hospital, com seus pacientes, doenças e acidentes, e no meio ambiente londrino, que lhe dá pouco espaço para a evasão. Só que os homens e as mulheres que a personificam são por demais estranhos, até o motorista Nicolai (Viggo Mortensen), mesmo tentando ser simpático, a assusta. Monossilábico, ele acerca-se dela sem deixar claras suas intenções. E o que ela busca; mais do que as ligações que irão revelar a razão da morte de Maria, são suas raízes, incluindo sua identificação com o pai, cujo nome em momento algum é pronunciado.


 


 


Cronenberg sobrepõe linhas narrativas em primeira e terceira pessoa, que guiam os personagens de forma a descobrir, cada um deles, os fios que os ligam. A linha mestra é ditada pelo diário, em off, com a voz de Maria indicando caminhos, denunciando, impulsionando a ação. É como se a morta se vingasse de seu algoz a partir do texto, deixado nas páginas de um caderno. A este Ana se apega; se orienta; não se deixando intimidar. Sob esta camada está o fio que permite os movimentos de Semyon, Kiril e Nikolai e, por que não, os de Ana, de sua mãe Helen (Sineád Cusack) e do tio Stepan (o grande diretor polonês, Jerzy Skolimowski, de “O Ato Final”). Ele, o diário, entretanto, paira sobre a cabeça de ambos, clamando por justiça. Esta dupla forma narrativa, que usa vozes variadas para impulsionar a ação, aumenta a complexidade da história, que apresenta os personagens e condiciona seus comportamentos.


 


 


Espaços narrativos expõem obscuridade  do ser humano


                



Estas são, no entanto, as linhas que Cronenberg deixa à mostra para o espectador tentar desvendar os fios da trama. A simplicidade com que ele o faz abre as trilhas que irão lançar luz sobre as camadas submersas entranhadas na vida dos homens que Ana encontra pelo caminho. E ele, Cronenberg, deixa o espectador antever o que a espera. Não se trata de revelações, de grandes segredos, isso o diário de Maria já o fez, com sua narrativa em primeira pessoa, o off, que delineia a ação e a conduz; o que importa, para ele, é adentrar a outros espaços, onde os corpos se mostram, possuídos por marcas, que simbolizam o mundo submerso, tomado pela frieza, a vingança e uma violência ritualística, a que Ana não terá acesso.


 


 


É o espaço normal de Cronenberg, o da natureza humana revelada em toda a sua obscuridade. Ele não rebusca o passado de Semyon, para saber como ele escalou os degraus da Máfia Russa, para tornar-se poderoso aos olhos de Ana (e do espectador), colocando-o sob luz difusa. Esta, às vezes ilumina seu rosto diretamente, noutras coloca-o na penumbra. Importa mais sua voz, o jeito calmo e compenetrado com que “dialoga” com Ana e a forma irritada, violenta, com que trata o filho Kiril (Vincent Cassel).


 


 


A única vez em que ele é mostrado em seu “habitat”; é quando se senta à mesa, no amplo salão do restaurante onde recebe Ana. Está sempre às voltas com uma recepção, um prato especial,  enquanto com olhares, acenos, comanda o ritual à sua volta.  Diferente de Nicolai, sempre submisso, monossilábico, compenetrado, disposto a seguir à risca o que determina sua tarefa, a de ser também executor.  Tem um gestual, um jeito de falar que mais investiga que dialoga, emitido por uma voz roufenha, quase um sussurro, numa demonstração de que os “filmes de Máfia” seguem o padrão vocal fixado por Marlon Brando em “O Poderoso Chefão 1”, e dele não consegue se distanciar.


 


 


O que os diferencia são, sobretudo, as inscrições em seu corpo que traduzem sua condição de membro da organização criminosa que ritualiza sua existência. Cada uma de suas tatuagens conta sua história de vida e de crime.  Mais do que isto, são diferenciais das marcas que a vida impõe ao ser humano, com suas rugas, veias, saliências. Ali, não, as tatuagens são distinções. Adverso do “mundo legal” que não registra nada para além das atividades de seus trabalhadores. No mundo do crime, assim, elas, as tatuagens, são símbolos da confiança e do sucesso da escalada.


 


 


Ritual do crime organizado busca a respeitabilidade


            


 


Nada mais enganoso. No “mundo legal” as distinções são comendas, títulos honoríficos e certificados. Nem por isto, menos falsos. Só que no “mundo do crime organizado” de “Senhores do Crime”, elas estão inscritas no corpo de seus membros. Nicolai aspira-as de modo a ter sua trajetória coroada de glórias. Seu contraponto é Kiril, colérico, infantil, carente, dúbio, que o instiga a provar sua virilidade. Nicolai é alguém que o filho de Semyon gostaria de ser, diante dos impasses em que o pai o coloca a todo instante. Precisa de afirmação e o faz através do motorista que o suporta e, ao mesmo tempo, orienta e domina. O comportamento de Kiril, no entanto, segue vias transversas. Seu jeito violento e frágil, a um só tempo, o trai. Mescla seu ódio a Nikolai à adoração e à forte atração que este exerce sobre ele. Suas tendências homossexuais são sufocadas, em troca de assistir Nikolai provar sua virilidade. Todo um pathus vem à tona; o desejo e a necessidade de ser amado, sentimento que não recebe do pai, substituído pelo “amigo”.


 


 


Cronenberg insere, assim, Freud e Reich no cinema. O motorista submete o patrão a seu ditame. Manipulação e sexo, que não se consuma. Numa brilhante seqüência, Kiril, bêbado, às vistas do pai, Semyon, beija os sapatos de Nikolai e fica estendido à seus pés.  Neste instante, se confirma a visão de que alguém de fora se mostra mais preparado a ascender ao topo do que o “herdeiro”. Durante alguns momentos desestabiliza, depois volta à “normalidade”. Um caminho diferente; visto em outros filmes sobre o “crime organizado”, centrado na máfia, seja lá que denominação tenha, se corsa, siciliana, russa, colombiana, terceiro comando, comando vermelho, etc… Aqui é a Máfia Russa, chegada a uma Londres de becos sujos, rio poluído, prédios esfumaçados e seres taciturnos. Cenário ideal para a trama que se passa em ambientes fechados e pequenos espaços de rua e calçada. Justa área para as ações mafiosas de Nikolai, Kiril e Semyon, senhores do tráfico e da prostituição de mulheres russas. E se contrapõem ao cotidiano da família de Ana; o tio Stepan e a mãe Helen.


           



Diretor ignora legado da Revolução Russa


 


 


Ele, Stepan, é um ex-agente da KGB, aposentado, vivendo em Londres com a irmã Helen. Exagera suas ações, mas não é nostálgico. Numa discussão com Nikolai, ele se põe a relembrar seu passado, a fim de intimidá-lo. Mas está fora de seu ambiente. E numa crítica vazia ao ele representou; Cronenberg o ridiculariza, como patético ex-agente, cujo poder ficou em algum lugar na ex-URSS. E, devido a isto, a “Máfia Russa” emergiu de seus tempos de esplendor.  Uma maneira de tentar soterrar, de vez, qualquer retomada do processo transformador, na atual Rússia. Isto é forçado, uma vez que persistem inúmeras contribuições da Revolução Russa, de 1917, suficientes para soterrar manipulações iguais às intentadas em “Senhores do Crime”.


 


 


Mas há uma simbiose entre Stepan e Nikolai, submersa às ações de ambos. Um segredo que o espectador descobrirá a seu tempo, numa demonstração da eficiência do combate à “Máfia Russa”. São, no entanto, entreatos que não satisfazem a quem quer ver para além das imagens e das possibilidades de elucidar as relações de decadência e fragilidade do Ocidente, refletido na Londres atual, ligada umbilicalmente aos EUA. Fica apenas a idéia de que o russo deve ser visto como mafioso; estereótipo a que lhe cabe no concerto da estigmatização do árabe como “terrorista”, o africano como “despreparado e inferior” e o latino como “preguiçoso e traficante”. Tudo isto numa tentativa de facilitar a opressão e o domínio imperialista, via cinema, portanto um veículo de comunicação de massa, controlado pelos EUA internacionalmente. E o crime organizado russo termina por compor um “gênero”, o de “filme de máfia”.  


 


 


O “filme de máfia” se inscreve na cinematografia que relaciona crime e poder à tentativa de respeito a que o mafioso aspira. Para isso ergue em volta de si todo um ritual, um código de honra, que o torna ”respeitável”. Transforma sua atividade criminosa em negócio, com fachada e envolvimento com segmentos empresariais legais. O que lhe dá a ilusão de pertencer a um meio social, que, do contrário, o rejeitaria. Seus códigos são representações religiosas, especialmente católicas, centradas na família, nas reuniões em volta de mesas faustosas, ladeadas por filhos, mãe, netos e cappos de toda ordem. E uma nostalgia por valores, como ética, moral, idealismo, que as demais camadas sociais relegaram, hoje, à segundo plano, em troca do consumismo e do hedonismo puro e simples. Qualquer deslize é punido severamente.


 



Comportamento dos cappos é cristão e medieval


       


 


Cabe ao “cappo de tutti cappo” zelar pela “normalidade” das relações entre ambos. Há nisto algo medieval, centrado na exacerbação do confronto e sua superação pela eliminação pura e simples. Suas armas provocam danos os mais cruéis, como forma de punir e amedrontar. As armas usadas em “Senhores do Crime” reforçam esta idéia, porque punhais reluzem e cortam, semelhantes à adagas: curtos, afiados, usados na glote das vítimas, que rasgam dorsos e barrigas. Prestam-se, inclusive, à atividade que exige sigilo, silêncio e habilidade em seu manejo. Do corte de uma glote e da amputação da ponta dos dedos do inimigo ao destrinchar do peru de Natal, sua habilidade se vê comprovada. Restam corpos retalhados, inimigos eliminados, espaço aberto para a continuidade dos “negócios”.


 


 


Nada do barulho ritualístico e cinematográfico de “O Poderoso Chefão 1, 2 e 3”, hollywoodiano; nas ações da máfia russa quanto menos barulho melhor. E Cronenberg, em duas seqüências, os mostram em ação. Saem, como entraram, solertes. Menos na batalha das facas, na sauna, onde prevalece a barbárie bruta. À moda greco-romana, os contendores se enfrentam, com ferocidade, dispostos a executar o inimigo. Domina-os o tom animalesco, sem traço algum de civilização, inclusive pelo local, que remonta à velha Roma e seus gladiadores. Um deles, Nicolai, despido literalmente, os outros nus pela ausência de reflexão sobre o objetivo da vendetta. Cronenberg ao usar o nu na luta em plena sauna, transforma a seqüência numa performance; com o corpo em movimento exposto ao olhar, ao devassar para encontrar algo que o denuncie.


 


Nele, portanto, as inscrições denotam despojamento e deixam na superfície do corpo, na epiderme, textos que refletem a barbárie renovada nesta Era Tecnológica. Não é à toa que persistem as tatuagens tal hierogriferos em cavernas, consignadas nos corpos da modernidade, com suas superficialidades e inseguranças.


 



Filme tenta primar pelo otimismo


    


 


A bela seqüência mostra a tendência do cinema atual, principalmente norte-americano (e não só ele), de dar à violência um caráter integrado aos conflitos regionais, às guerras de ocupação e aos confrontos urbanos. Ações ditadas pela necessidade de superação pela eliminação pura e simples do outro.Três filmes bem o ilustram: “Onde os Fracos não Têm Vez”, dos Irmãos Joel e Ethan Coen; “Sangue Negro”, de Paul Thomas Anderson; e “Senhores do Crime” seguem esta linha. O fazem explorando o lado obscuro do homem, como metáfora da banalidade da vida, do consumismo e da desesperança ante a suposta impossibilidade de superar os obstáculos colocados pelo neoliberalismo e pela globalização. Os dois primeiros deixam em aberto a possibilidade de haver redenção, enquanto Cronenberg prima pelo otimismo.


 


Não o otimismo cristão incentivador da redenção, Cronenberg escapa a este clichê. Revela a natureza de Nikolai, a dubiedade que o domina o tempo todo e a fragilidade da organização criminosa. Ele não é o que se vê, tem outras camadas, principalmente a que surpreende Ana, à qual não responde quando questionado. Não é guiado por uma voz, a do diário de Maria, como Ana, só por uma missão, que o espectador saberá ao assistir o filme. A morte, portanto, tira Ana do marasmo, da ação para fora, enquanto, como obstetra, sua ação é para dentro, para sofrimentos que exigem soluções imediatas, de vida ou morte. Mas só isto é insuficiente, é preciso mais. Ela precisa usar as duas ações, ligá-las e agir. Enfim, ter uma ação transformadora. E Nikolai age para dentro e para fora. Não se revela, sua missão o impulsiona para um lado e outro, até mesmo em parceria com Ana, numa dialética que o espectador gostaria de ver na vida real. Mas ainda não o faz.


 



“Senhores do Crime” (Eastern Promises) EUA/Canadá/Inglaterra. 2007. Drama Policial. 100 minutos. Roteiro: Steven Knight. Direção: David Cronenberg. Elenco: Viggo Mortensen, Naomi Watts, Vicent Cassel, Armin Mueller-Sthal, Jerzy Skolimowski, Sineád Cusack.

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