“Setenta” Chumbo Grosso
A cruel repressão da ditadura civil_militar, a resistência das organizações de esquerda e os sequestros de diplomatas para manter vivos seus militantes são o centro deste documentário da cineasta Emília Silveira
Publicado 19/06/2014 13:35
A história girou rápido para alguns sobreviventes da guerrilha urbana (1964/1978), vistos neste “Setenta”. Alguns surgem ainda energizados, outros com as marcas da luta e do tempo no corpo. Há um traço comum neles: pertencem à geração que, jovem, resistiu à brutalidade da ditadura civil militar (1964/1985), em seus cárceres, sob brutal tortura. A cineasta e ex_militante Emília Silveira recupera, a partir do roteiro da jornalista Sandra Moreyra, suas múltiplas vivências e visões da resistência armada.
Foca na guerrilheira Nancy Mangabeira Unger encurralada num prédio pelos agentes da repressão e sua companheira Vera Rocha Dauster vindo em seu socorro. Muda para o guerrilheiro da ALN, Reinaldo Guarany, cuja companheira Maria Auxiliadora Lara Barcelos, Dora, banida e exilada com ele em Berlim, Alemanha, termina jogando-se sob as rodas do trem. Ou Luís Alberto Leite Sanz, Luizão, cujo filho, embora não tenha convivido com ele, trata-o como herói, por ter ele “lutado por um ideal”.
As filhas de Affonso e Mara Curtiss Alvarenga contam que nada podiam falar sobre os pais, por eles correrem risco de morte. Outros, como o ex_presidente da UNE, Jean Marc Friedrich Charles Van der Weid, acham que os guerrilheiros agiam com “voluntarismo”, ou “amadorismo” segundo Guarany, citando o carro velho usado numa ação. Talvez sejam a razão das sucessivas derrotas para a repressão, lamentadas pelo afrodescendente Francisco Roberval Mendes, embora diga que a luta valeu a pena.
Guerrilha urbana foi resistência
Faltam, no entanto, as devidas contextualizações para não cair em autocríticas de ocasião. A guerrilha urbana não foi uma preferência radical “para cair na luta armada”. Foi pressionada pela brutalidade da ditadura civil-militar, em meio à Guerra Fria (1945/1991), a Guerra do Vietnã (1955/1975), a Revolução Cubana (1959) e as lutas de libertação nacional no Terceiro Mundo.
Desde o início do golpe civil_militar em 1°/04/1964, os generais ditadores implantaram sucessivos atos que ceifaram o sistema democrático do país:
I – 1964/1967: prisão de centenas de lideranças políticas, sindicais e estudantis, suspensão dos partidos políticos, cassação de mandatos parlamentares, fechamento de entidades sindicais e estudantis, suspensão das eleições presidenciais, de governadores e de prefeitos das capitais;
II – 1968/1974: AI-5) – fechamento do Congresso Nacional (12/12/1968, AI-14 – pena de morte por terrorismo (04/09/69), tortura e execução de lideranças e militantes democráticos e de esquerda.
Estas imposições geraram múltiplas formas de resistência: a) Liberdades democráticas: passeata dos 100 mil, em 26/06/1968, no RJ, criação do Bloco dos Autênticos no Congresso Nacional, derrota da ditadura civil_militar nas eleições de 1974; b) Luta popular: organizações de esquerda criam diferentes formas de luta no campo e no meio urbano. É o período da Guerrilha do Araguaia, no sul do Pará (1967/1974), organizada pelo PCdoB e combatida ferozmente pelo ditadura civil_militar.
Opção pela luta armada
Diante do número de lideranças e militantes presos, torturados e ameaçados de execução, a tática usada pelas organizações de guerrilha urbana foi a de trocar diplomatas por seus companheiros encarcerados nos porões da ditadura civil-militar. No período de dois anos foram sequestrados quatro diplomatas, sob o comando da ALN (Aliança Libertadora Nacional), VPR (Vanguarda Popular Revolucionária) e MR-8 (Movimento Revolucionário Oito de Outubro):
1) Embaixador dos EUA, Charles Burke Elbrick, (04/09/1969 a 07/09/1969), trocado por 15 presos; 2) Cônsul do Japão em São Paulo, Nobuo Okushi (11/03/1970 a 15/03/1970), trocado por cinco presos; 3) Embaixador da Alemanha Ehrenfried Anton Theodor Ludwing Von Holleben (11/06/1970 a 16/06/1970), trocado por 40 presos; 4) embaixador da Suécia Giovanni Enrico Bucher (07/12/1970 a 13/01/1971), trocado por setenta presos.
Estas ações terminaram libertando 130 presos e ajudaram a fortalecer, com outras forças políticas, sindicais e estudantis, a ampla frente popular pela Anistia e as Diretas Já. Os setenta guerrilheiros, enquadram-se neste processo de acúmulo de forças e ações.
Olhar torto da Rede Globo
Porém, o caminho por eles percorridos foi árduo: banimento do país, exílio no Chile, durante o governo Salvador Allende (1970/1973) e, depois, dispersão por outros países. Embora alguns deles não reneguem sua participação na guerrilha urbana, também não reforçam a confiança na substituição do capitalismo pelo Socialismo. Não faz sentido.
Tampouco faz sentido a participação da Globo Filmes, o braço cinematográfico da Rede Globo, na produção do filme. Justo ela que ainda hoje provoca a ira dos indignados das Jornadas de Junho de 2013: “A Globo não controla minha mente”. Sinal de que a mea_culpa tardia, por ter sido porta_voz midiática da ditadura civil-militar, ainda cause revolta por persistir no direitismo.
“Setenta”. Documentário. Brasil/Chile. 2013. 90 minutos. Trilha sonora: Fábio Mondego. Montagem: Joana Collier. Fotografia: Vinícius Brum. Roteiro: Sandra Moreira. Direção: Emília Silveira.