Sobre o poder do Fed

“Diz-se que Lênin afirmou que a melhor maneira de destruir o Sistema Capitalista era desmoralizar a moeda… Certamente Lênin estava com a razão. Não há maneira mais sutil ou segura de subverter a base da sociedade do que desmoralizar a moeda. O proces

O célebre economista Adam Smith no seu A Riqueza das Nações de 1776 defendia a idéia que a economia é governada por leis naturais. Smith percebeu nas relações econômicas, uma suposta ordem natural comandada por uma “mão invisível” conduzindo a sociedade a um mundo harmônico.  Na segunda metade do século XIX, Léon Walras através de uma análise matemática levou essa idéia ao paroxismo: a livre concorrência faz com que o mercado esteja sempre em equilíbrio. Neste caso, segundo essa tradição, não há possibilidade de crises, a não ser por um desequilíbrio efêmero nos mercados, causado por algum fator exógeno, como por exemplo, a ação dos governos ou algum desastre natural.


 



O capitalismo como ele é
 


 


Ao contrário dos ideólogos do mercado, Marx observara que as crises são intrínsecas ao funcionamento da economia capitalista. Sob a força da concorrência, os empresários são compelidos a acumular capital continuamente sob o risco de serem banidos do mercado. A questão é que, em algum momento, a acumulação de capital torna-se maior que a capacidade de aumentar a taxa de lucro. Keynes, um reformista assumidamente preocupado com a manutenção do capitalismo, também alertara sobre a instabilidade do sistema. Como bem lembrou Belluzzo (1), nos rascunhos de preparação da sua principal obra, A Teoria Geral de 1936, Keynes conferia a Marx a observação seminal sobre a natureza da produção capitalista. Esta não é como os economistas freqüentemente supõem, um caso de M-D-M’, isto é, de troca de mercadoria por dinheiro para obter outra mercadoria, mas sim, D-M-D’, na qual a produção é iniciada com dinheiro com a finalidade de obter mais dinheiro. Ou seja, o objetivo não é a acumulação de mercadorias, mas de riqueza sob a forma monetária.



 
Depois da Segunda Grande Guerra o capitalismo mundial passou por uma estabilidade sem precedentes. A intensa prosperidade entre 1945-1970 nas economias capitalistas avançadas, e em algumas economias periféricas como o Brasil, beneficiou o emprego e a distribuição de renda em favor dos assalariados. Mas esse período foi uma exceção na história. Após o colapso do regime de Bretton Woods no início da década de 1970 o capitalismo mundial entrou novamente numa era de grande turbulência. O brutal aumento do papel das finanças na acumulação de capital aumentou ainda mais a instabilidade nos mercados, ao mesmo tempo em que a capacidade reguladora dos Estados é constantemente colocada à prova. Neste cenário, os bancos centrais tornaram-se instituições imprescindíveis na tentativa de manter alguma ordem em uma economia cada vez mais incerta e irracional. Esta contradição é visualizada no papel dos bancos centrais na série de crises financeiras que atravessaram a década dos 1990, justamente quando se proclamava a vitória do mercado auto-regulado sobre a interferência dos governos gastadores.


 


 
No topo da pirâmide está o Federal Reserve (Fed), banco central dos Estados Unidos. Com um poder sem precedentes dentro de um sistema profundamente assimétrico, é o guardião que mantém a centralidade do dólar no sistema monetário internacional. Ao contrário do padrão dólar-ouro, no padrão dólar-flexível a moeda central não precisa conservar seu poder de compra em relação às demais moedas e/ou ativos. Assim, desempenhando o papel de banco central do mundo, o Fed é o único que pode implementar uma política monetária e cambial nacional sem se preocupar com a variação do dólar.


 


 


Qual é o limite?


 



Mas até onde vai a capacidade de intervenção do Fed? É possível que uma crise da mesma magnitude ou pior que a de 1929 possa se repetir? Até o momento, aparentemente a centralização do poder decisório nas mãos do Fed reduziu a possibilidade de crises tão intensas, na duração e no espaço geográfico, como a crise de 1929 e a grande depressão que se seguiu. Deve-se lembrar que, naquela ocasião, o Fed possuía pouca experiência e ainda não concentrava tanto poder como acontece hoje (2).


 



O Fed tem assegurado a liquidez do sistema com grande perspicácia. Um teste ocorreu na segunda quinzena de outubro de 1987. No dia 19 uma avalanche de vendas eletrônicas fez o mercado despencar em 22,6%, num comportamento semelhante ao crash de 1929 (3). A rápida ação do Fed com enormes recursos empregados nos mercados financeiros garantiu a solvência do sistema. A crise mexicana de dezembro de 1994 foi mais um teste. As autoridades monetárias norte-americanas coordenaram um pacote de apoio ao México no montante de US$ 40 bilhões, não permitindo que a crise se espalhasse como nos anos 1980. Num curto espaço de tempo o México conseguiu restabelecer o financiamento externo. Novas operações de socorro coordenadas pelo Fed, com o apoio do Departamento do Tesouro dos Estados Unidos, foram realizadas com relativo sucesso na crise asiática de 1997-1998 e em 2001 na Argentina. Na Ásia, vale lembrar, o Japão se propôs a intervir na crise através de uma ajuda financeira, mas foi prontamente rejeitada pelos Estados Unidos.


 



Em vista disso, parece claro que a capacidade de intervenção do Fed, não obstante possua um limite, é bastante elástica. Isto pode ser explicado em grande parte pela cooperação e aceitação por parte das outras potências capitalistas (fato realmente inédito) aos movimentos de alta e queda da moeda norte-americana segundo a conveniência das autoridades norte-americanas (4).


 



Não restam dúvidas de que os Estados Unidos são de longe os maiores beneficiados da globalização financeira. Após a crise asiática diversos projetos de reforma do sistema financeiro internacional foram recomendados, mas até o momento nenhum foi levado adiante. Os maiores empecilhos nascem justamente dos Estados Unidos que emperram qualquer reforma que possa diminuir o papel que o dólar exerce no sistema monetário internacional. Entre as propostas rejeitadas pelo governo norte-americano estava a criação de zona de flutuação entre o dólar, o euro e o yen, levantadas pelos ministros das Finanças francês e alemão, em 1998, na qual as respectivas autoridades monetárias atuariam de forma cooperativa para reduzir a instabilidade excessiva do dólar. Essas propostas de reforma retratam o temor que instituições como o próprio FMI e o Banco de Compensações Internacionais (BIS) sentem em relação à desordem financeira e a possibilidade de novas crises (5).


 



A dificuldade de um novo compromisso pelas condições descritas acima sugere uma grande confiança, por parte das autoridades norte-americanas, na capacidade do Fed. É esperar até a próxima crise.


 


 


(1) BELLUZZO, Luiz Gonzaga (2004). Uma nova chance para Keynes. In: Ensaios sobre o capitalismo no século XX. São Paulo: Unesp.


 



(2) O Fed foi fundado em 1913 e depois da crise de 1929 ocorreram várias mudanças nos estatutos que aumentaram a sua autoridade. Isto evidentemente não significa que coaduno com a mesma opinião, bastante curiosa, do monetarista Milton Friedman que afirmava que a crise foi causada por erro de um dirigente do Fed que não teria injetado liquidez suficiente às necessidades do mercado naquele momento.


 


 
(3) Cf. CHESNAIS, Fraçois (1998). Mundialização financeira e vulnerabilidade sistêmica. In: A mundialização financeira: gênese, custos e riscos. São Paulo: Xamã.


 



(4) Cf. BRUNHOFF, Suzanne (2005). A Instabilidade monetária internacional. In: A finança mundializada. São Paulo: Boitempo.
(5) Cf. KOLKO, Gabriel (2006). A nova (des) ordem financeira. Disponível em www.diplo.uol.org

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