“Sombras do Passado”: A felicidade não é tudo

Em seu filme de estréia, o diretor alemão Florian Gallenberger  usa o melodrama para mostrar que o amor é apenas uma parte da vida

Quando Masha (Tannishtha Chatterjee) diz, em “Sombras do Passado”, do diretor alemão Florian Gallenberger, que “a felicidade não é tudo”, ficamos com a impressão de que ela teve uma vida incompleta. Esta só seria diferente se ela tivesse alcançado seu objetivo. Ela não o atinge por razões ditadas pela vida, seja na busca de uma liberdade que sempre lhe escapa, seja nas armadilhas que lhe surgem através de um sistema de castas, que impõe à mulher os degraus mais baixos de uma sociedade milenar, ou seja, nos descaminhos que a impedem de reencontrar Ravi (Prashanth Narayanan), motivo de sua paixão. Mas se a “felicidade não é tudo”, que buscas outras o ser humano deve empreender para chegar ao nirvana, aquele instante único em que há o regozijo entre o sonho e a realidade, materializado no objeto de desejo? As respostas surgem ao longo deste belíssimo filme, que nos mergulha numa Índia povoada de injustiças e tomada por Shiva, a deusa de cujos poderes, em determinado momento, Ravi duvida. Há, sobretudo, uma busca incessante pelo encontro do outro e pelo amor que se mantém, mas está sempre em fuga.



 
         


Este é o centro deste “Sombras do Passado”, um melodrama acentuado por fortes cores, muitas cores, com tonalidades negras, vermelhas e turquesa, que acentuam o estado de espírito dos personagens pontuado pela esplêndida música de Gert Wilden. Estamos na Índia dos anos 20, época da colonização inglesa, em que a economia era ditada pela indústria têxtil com seus tecidos de algodão e célebres tapetes, que fizeram a glória do Império britânico. Como se a acentuar este fato, Gallenberger, em seu filme de estréia, nos mergulha nos imensos galpões onde trabalham centenas de crianças (de oito a 12 anos), às voltas com fios, cortes e texturas. Estão ali não por livre escolha, sim porque foram vendidas por seus pais, a exemplo de Masha. Descalços, submetidos a jornadas brutais de trabalho, eles não vêm a vida lá fora, salvo por instantes em que conseguem raros momentos de descanso.


 



         
Crianças foram escravizadas durante império britânico


         


Estas seqüências atestam a forma como foi sustentado o império britânico. As crianças, dentre elas Ravi, são na verdade escravas sem futuro algum. Ao encontrar Ravi, Masha ganha um protetor e alguém com quem dividir suas agruras. Ele é duro, compreende a brutalidade do sistema e não nutre ilusão sobre suas possibilidades de fuga. Pelo contrário, constrói sua liberdade a cada moeda que economiza as custas de comer uma magra ração de arroz. Aos poucos, mesmo pensando que  o pai que a vendeu voltará para buscá-la, Masha entende que sua vida pertence à fábrica, gerida por funcionários curtidos na brutalidade do sistema colonial. Florian não dá espaço para o espectador pensar em contrapontos, a afrouxamento das regras, usando tonalidade sombrias, ele acentua as agruras por que passam as crianças.
         


 


Muitas já nem pensam em outra forma de existência. Submete-se às normas da fábrica, de seus chefes e supervisores, sem reação alguma.Menos Ravi. Ele e Masha terminam por firmar um pacto que será motivo de seus desencontros futuros. Antes terão todo um percurso a seguir, entre perseguições, fracassos e mudanças que para eles serão definitivas. Ravi, calculista, frio, observador, supera os obstáculos que o sistema lhe impõe aproveitando-se de suas falácias. Responde-lhe da mesma forma que este o trata. Hábil negociador vai, aos poucos, galgando os degraus que o levarão a seu objetivo: a liberdade. Nenhuma concessão faz. Tampouco revela o que pretende a outras crianças. Age solitariamente, sem ares de herói ou super-homem. Esta faceta do personagem o prepara para as etapas seguintes de sua vida, quando enfim livra-se das amarras da escravidão na fábrica. Esta, símbolo do colonialismo britânico, não representa uma fase na vida das crianças, mas algo duradouro, do qual é difícil se libertar.


 


        


Meninas são levadas para casas de prostituição


      


 


“Sombras do Passado”, embora trate da exploração do trabalho de menores, avança para outra área ainda existente em muitos países: a da prostituição de meninas. Na Calcutá da década de 40, fase de grandes lutas pela independência da Índia, elas eram oferecidas a membros da classe dirigente, que as podiam ter por instantes ou comprá-las para delas fazer uso sexual. Elas são treinadas, vestidas e maquiadas para o prazer dos freqüentadores do bordel. Não ficam na rua, iguais a dezenas de mulheres curtidas na prostituição, são mantidas como pérolas raras, só mostradas a clientes especiais. Masha cai num destes prostíbulos, onde aprende a dançar, a fazer a corte, como uma das principais atrações da casa. Numa dessas noites, dançando para um dos clientes, nos remete aos meneios feitos para alegria de Ravi, quando ainda estavam na fábrica e foram assistir a “Ali Babá”, produção indiana. Ela dança para ele, conquista-o, angelicalmente. Ao fazê-lo no bordel, ganha ares maliciosos, luxuriosos. Perdeu, enfim, a inocência.



         


Interessante neste filme, que usa a estrutura do melodrama, é que não descamba para a tragédia, o pessimismo. Tem muito a ver com a frase “a felicidade não é tudo”. O pacto entre Ravi e Masha é para eles se encontrarem e, a partir daí, viverem juntos. Eles tentam e há sempre algo a se interpor entre eles. Muitos deles devido ao gênero de vida que ambos vivem. Ela, diante de sua fragilidade, de seu desamparo, acaba numa situação em que procurar outro gênero de vida tornou-se difícil. Aqui prevalece o decadentismo, tão característico dos melodramas, alguém tem de ser uma alma decaída, representar o pecado, para justificar o desfecho. Masha representa a alma decaída, a que irá pagar pela situação em que foi levada. Ravi, não, seu calculismo e frieza são “as virtudes” que o irão levá-lo a uma vida menos atribulada.


          


Felicidade não é toda a vida do indivíduo


          


Ele é o virtuoso, aquele cuja vida está entre a paixão desmedida por Masha e o equilíbrio de sua convivência com Deepha (Tumpa Das). Esta é contraponto a Masha. Sofre, vê a outra como ameaça, mas não exacerba, sabe manejá-lo. Às vezes o deixa escapar, ir ao encontro da outra, por saber que o tem sob rédeas. Dá-lhe o que ele necessita, apóia-o, mesmo que tenha acesso de raiva, de ciúmes. As razões que o levam a ficar com ela estão centradas na forma como o manobra, a ponto de evitar que ele vá longe demais. É ardilosa, cerebral, na qual Ravi se ampara, ainda que não queira. Isto resume “a felicidade não é tudo”, ou seja, a paixão, pactos e amor, deixam de ser a essência da vida, para ser parte dela. Há algo de materialista nesta concepção de Gallenberger, também roteirista do filme. É impossível deixar conforto e segurança para trás e ir viver apenas pela paixão.



           
Ravi tem propensão aos negócios, a ver adiante. Constrói com Deepa vasto patrimônio, loja, mansão, e o expande para o exterior. A loja acanhada que ele encontrou ao chegar a Calcutá, logo se transforma num negócio próspero. Ele e Deepha formam mais que um casal, são sócios, pensam igual, por mais que ele continue apaixonado por Masha. Esta é um sonho, alguém de seu passado, que devia se prolongar no presente. Há, porém, outros interesses. Nas relações capitalistas, as trocas e o conforto que elas proporcionam ditam as relações amorosas. Nada de arroubos que ponham tudo a perder. Ravi não irá à decadência, ao vazio, à demência, como nos melodramas clássicos (veja “Palavras ao Vento”, de Douglas Sirk, onde o milionário Robert Stark, incapaz de amar a mulher, mergulha no álcool e acaba por se suicidar), por continuar apaixonado por Masha. Tem sempre um momento de reflexão. E o mantém até o final.


 


           
Existem várias formas de se chegar à felicidade


           


Difícil preservar a essência do amor nestas circunstâncias. Talvez, nestes tempos sombrios, apocalípticos, prestes a sucumbir às devastações das mais diversas naturezas, estejamos próximos de ver a derrocada da estrutura que gestou esta visão. Afinal, “a felicidade não é tudo” é a essência sim da vida, não necessariamente conseguida através do amor pelo outro, porém nas mais diferentes perspectivas: da conquista da liberdade, da libertação de um povo, na luta cotidiana pela sobrevivência – em cada instante alcança-se uma forma de felicidade. Trata-se de um instante, um momento preciso em que o que se almeja se concentra num ponto único, simbolizado pela superação de um ou de vários obstáculos. E a soma dessas partes pode ser também o prolongamento de um sentimento ou emoção que seja, sem dúvida, “a felicidade”. Masha quando diz a sua frase está num estágio da vida em que já viveu tudo e nada mais espera. Pode, numa frase, sintetizar toda uma existência. E nisto, ela está certa: “a felicidade não é tudo”.



 



“Sombras do Passado” (Schatten Der Zeit). Alemanha/Índia, 2004, 122 minutos. Direção: Florian Challenberger. lenco: Tannishtha Chatterjee, Prashanth Narayanan, Tumpa Das.
           

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