“Super-Homem – O Retorno”: Quem precisa de herói?

Filme do diretor norte-americano Bryan Singer desmistifica o herói dos quadrinhos.

As divindades, como os super-heróis, são indestrutíveis. Há momentos em que eles se confundem. Têm poderes que os tornam onipotentes e invencíveis. Às divindades é reservada a capacidade de jamais ser posta em dúvida. O super-herói ainda pode fraquejar, ser ameaçado, mas, sabe-se de antemão, que terminará por triunfar. Resulta daí sua perenidade, fascínio e confiança das massas por vários séculos. Nada pode, então, violar sua imagem. Esta posição, no entanto, depende do momento histórico, como se vê em “Super-Homem – O Retorno”, do diretor norte-americano, Bryan Singer (X-Men). Em seu filme, divindade e super-herói se confundem de tal forma que o público chega a torcer para que isto se confirme. Mas é nesta dúvida que reside todo o encanto desta produção de U$ 260 milhões, que surpreende pela coragem de Singer de desmontar o conceito do super-herói e, ao mesmo tempo, de divindade do Super-Homem.



         


Existe um ponto em que ambos são vulneráveis, principalmente o Super-Homem (Brandon Routh), que fraqueja diante da kriptonita. Este cristal, esverdeado, ponteagudo e hexagonal, brilha e tem o poder de fazer Kal-El, o nome real do Super-Homem, sucumbir a seus poderes. Todo o plano engendrado pelo seu arquiinimigo, Lex Luthor (Kevin Spacey), é atraí-lo para  onde ele existe em profusão e destruí-lo. Singer faz todo o filme girar em torno destas questões: a da possibilidade de o herói ser uma divindade, a de ele perder seus super-poderes e a de ele deixar-se possuir pelos sentimentos humanos. Escapa, desta forma, aos clichês dos filmes da série anterior, que o mostrava apenas como super-herói.


 


Um super-herói cheio de dúvidas


        


Desde o início percebe-se que algo não irá bem com Clark Kent. Está mais interessado na vida de Lois Lane, sua antiga paixão, do que com os problemas que afetam a cidade onde vive. As dúvidas o possuem a tal ponto que se enciúma com a vida de casada que ela leva agora. Quando a espaçonave em que ela se encontra, num vôo experimental, é ameaçada por Lex Luthor, ele sai em seu socorro, não para salvar aos demais passageiros, mas porque ela se encontra a bordo. Temos, então, uma mudança de foco na história deste super-herói, criado nos anos 40 pelos cartunistas Joe Shuster e Jerry Siegel, que desde então freqüenta o imaginário de várias gerações do planeta.
          


 


O Super-Homem original está presente onde há ameaça à vida da cidade e de seus habitantes. Seu duplo Clark Kent ainda tem emoções e alimenta uma paixão platônica por Lois Lane (Kate Bosworth), mas com o Super-Homem isto jamais acontece. Ou acontecia, até este “Super-Homem – o Retorno”. Aqui, também ele sucumbe aos encantos da repórter do Planeta Diário, onde o também repórter Clark Kent trabalha.Ou, para ser preciso, o duplo deixa de existir e em sua transformação, ele não perde a capacidade de se apaixonar. Quando Lex Luthor põe seu plano em ação, parte do duplo prevalece; justo a que o vilão quer exterminar. Mas ele logo parte para um passeio com Lois Lane, demonstrando ser um herói para novos tempos.
        


 


É este lado, esta persona de Kal-El, nascido no planeta Kripton e mandado para a terra, quando seu planeta é destruído, que permeia todo o filme. De forma polêmica e corajosa, pois o herói, mesmo fundindo-se com a divindade, possui características que levam Lex Luthor a desvendar seu segredo. E o público que vai ao cinema disposto a vê-lo triunfar, vê-se mergulhado numa sucessão de entrechos (seqüências) que não faz sentido para um super-herói. Singer manteve seus superpoderes, mas os enveredou para um caminho que surpreenderá o espectador. O que é desvendado não é seu caso com a Lois Lane casada,  mas a impossibilidade de ele triunfar.


           
Reflexo da paranóia norte-americana



Trata-se de uma atitude, como já observado, corajosa, pois vivemos numa época em que os super-heróis podem não resolver os problemas, mas apresentar caminhos. Kal-El, cheio de dúvidas, está longe de possibilitar isto. Em momento algum chega a dar esta impressão quando impede que os planos de Lex Luthor de destruir a cidade sejam alcançados. Os alvos, como estamos na época da paranóia americana, são prédios duplos, multidão, veículos em pleno rush, e ele, Kal-El evitar que eles sejam postos abaixo. Há, no entanto, uma contradição em seu comportamento, nada que ele faz tem motivo altruísta; trata-se de uma ação mecânica de sua parte.
          


 


Decididamente não há como se identificar com um super-herói cuja mente está presa à perda, ao medo da solidão, à busca do eu perdido. Talvez este seja o tempo do super-herói coletivo, aquele que prescinde de um ídolo ou salvador da pátria, como o título que a própria Lois Lane dá à matéria que sela sua relação com Kal-El:”Quem precisa de um super-herói?”; Tem sentido nestes tempos neoliberais em que o suposto “salvador da pátria” é o próprio vilão. Este perdeu o encanto. Morreu o herói mitológico, aquele que saído das cavernas ganhou o espaço urbano, na figura da justiça e do direito de classe. É o momento de o herói coletivo, aquele que materializa a idéia de libertação, da justiça, de direito, de liberdade e de democracia para os oprimidos.


                 
Época das divindades está encerrada


            


“Super-Homem – O Retorno” não é, assim, um filme para quem está acostumado às epopéias do Kal-El, Super-Homem, das revistas em quadrinhos e dos filmes da série com Christopher Reeve. Suas características de herói estão lá, da força descomunal à sua capacidade de ler mentes e apreender emoções. Daí, talvez, o motivo de seu sucesso. Mas é, sem dúvida outro Super-Homem, mais introspectivo, falível e, enfim, humano. O que o adapta de forma perfeita aos novos tempos e atesta a falência do super-herói. É um trabalho e tanto de desestruturação de um mito feito por Singer e seus roteiristas Michael Dougherty e Dan Harris. O fazem num filme dark, sombrio, em que todas as indefinições do momento histórico atual se projetam na incapacidade de o super-herói resolvê-los a contento. Atesta-o a sobrevivência do vilão Lex Luthor, por mais que seja esta uma das características dos heróis dos quadrinhos, que levam o herói e o vilão a se defrontarem em outra aventura adiante.
          


Singer põe estas questões em seu filme, de forma velada. Kal-El é vulnerável, sua voz não ecoa, não se eleva, é frágil demais. Para o “Super-Homem” quase centenário, o tratamento que ele lhe dá é de um epitáfio. Sua redenção se dá através da revelação ao garoto Jason White (Tristan Lake Leabu), sem que este perceba, e o público fica a pensar se a época das divindades e dos super-heróis foi encerrada no momento histórico em que vivemos. Talvez nunca tivesse existido. Melhor para todos, pois, desta forma, sobrará tempo para a construção de uma sociedade em que o homem empregue seu tempo em transformações criadas e não à procura da divindade ou do super-herói.



Super-Homem – O Retorno. EUA, 2006.Duração: 153 minutos. Roteiro: Michael Dougherty e Dan Harris. Direção: Bryan Singer. Elenco: Brandon Routh, Kevin Spacey, Kate Bosworth, James Marsden, Tristan Lake Leaby.

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