“Um Amor Além do Muro”: Juventude sem rumo

Diretor alemão Dominik Graf narra em seu filme a reação da  juventude alemã-oriental ao Estado no período pré-muro e abre espaço para comparação com o que aconteceu na mesma época no Ocidente

No final de “Um Amor Além do Muro”, do alemão Dominik Graf, o jovem desenhista Siggi Molnar (Max Riemelt) encerra sua história em tons nostálgicos, deixando o público com a sensação de algo incompleto. Uma vida que poderia ter sido cheia de amor, acabou dividida pelo Muro de Berlim. Menos por uma revelação que pode ser tomada em duplo sentido de resistência por crer no avanço ao Socialismo na Alemanha Oriental ou na ampliação da “resistência” ao sistema ainda em vigor. Cada um poderá tirar suas conclusões. Alguns dirão que foi plantada ali a semente da revolta que seria concluída 28 anos depois, com a queda do próprio muro. Uma etapa histórica cujos reflexos ainda não foram absorvidos e refletidos em sua totalidade para que se tire as lições necessárias.



               
Não fosse por isto, “Um Amor Além do Muro” seria um daqueles filmes a que assistimos e classificamos como reacionários e anticomunistas. Certamente o é em ambas as vertentes. Com a agravante de que bebe nas fontes dos dramas hollywoodianos, produzidos para condenar sistemas e lideranças contrárias ao sistema capitalista, liderado pelos EUA. Um dos exemplos mais recentes é o drama de tribunal “Justiça Vermelha”, do norte-americano Jon Avnet, em que Richard Gere faz o advogado perseguido pela justiça chinesa. Há toda uma encenação sobre a falsidade do julgamento e a ilegitimidade  de quem o preside. Nada ali parece consolidado ou baseado em leis democráticas elaboradas pelo legislativo nos moldes da democracia burguesa. Pelo contrário, segundo esta visão, tudo é feito apenas para penitenciar e sacrificar os que supostamente lutam pela “liberdade”.


 


                
Rebeldia regada a rock


                



Em “Um Amor Além do Muro” a narrativa é articulada para desembocar numa condenação da antiga RDA, pré-Muro de Berlim. A ação começa inadvertidamente com Siggi, de 20 anos, narrando seus conflitos interiores enquanto atravessa uma Dresden quase despovoada, com seus canais e vegetação que lhe dão um ar de inocência. Nessa caminhada, ele chega a um parque onde um grupo de jovens aguarda a chegada de aparelhos de som e discos de rock n´roll.Conhece então a jovem poeta Luise (Jéssica Schwart), que segue os amigos à distância. Nada mais inocente do que jovens num parque, ao estilo “Hair”, para surfar na onda do movimento da juventude que então se iniciava. Só que o país não é do chamado Ocidente, mas do Bloco da Europa do Leste, chamado de “Socialismo Real”. As aparências, assim, são mais do que a efusividade juvenil anuncia.



                
De repente, Yuri Gagarin dava mais um importante passo para a supremacia soviética no espaço, em 12 de abril de 1961, fato este que desembocaria na corrida espacial da União Soviética com os EUA. Os jovens começam a tocar seus “long-plays”(discos de vinil), a polícia chega e muitos são espancados, perseguidos e presos. Siggi envolve-se nesse confronto sem saber de que se trata. Queria só desenhar fachadas de casarões medievais e passear enquanto meditava sobre seu futuro, se seguia ou não a carreira de cenógrafo aprendiz na companhia estatal onde dançava sua tia Helga.


 


Termina fugindo junto com Luise e seu marido, Wolle (Ronald Zehrfeld), jovem que simboliza o espírito da época: sexo, drogas e rock n´roll e, portanto, não é bem visto pelas autoridades alemãs-orientais. Ele será o contraponto a Siggi, que dividirá com ele o amor por Luise. Cabelos grandes, blusão de couro, comportamento largado, ele levará Siggi para recantos que se revelarão perigosos para o jovem desenhista recém ingressado na companhia estatal de dança.


 


               
Embrião da contestação ao sistema comunista


 


                
A manifestação no parque torna-se então o embrião da contestação ao sistema comunista alemão-oriental.Os jovens a transferem para na casa de shows, Cacatua Vermelha, onde predomina a dança e música russa, de grande influência no Bloco do Leste. Essas atrações, no entanto, duram pouco, logo são substituídas pelo que realmente lhes interessa: o rock n´roll, o namoro aberto, o consumo de bebidas alcoólicas e, principalmente, sexo desinibido. Se no Ocidente esse comportamento revolucionou costumes, estrutura política e social e trouxe a juventude para o primeiro plano, na RDA o impacto não poderia ter sido menor. Só que a Stasi, polícia-política alemã-oriental, vigiava o grupo de perto, inclusive checava o comportamento do próprio Siggi. E o que era uma tendência à rebeldia foi se tornando “uma ameaça ao Estado”, tendo a Cacatua Vermelha como centro irradiador da contra-revolução. 



               
Até este ponto, “Um Amor Além do Muro” assume aspecto documental, de mostrar as contradições de um sistema que, segundo Graf, “não soube analisar o comportamento da juventude”. Um sistema que procurava manter tudo sob seu controle, quando ela, a juventude, quinze anos depois da 2ª Guerra Mundial, já deixava muitas referências revolucionárias para trás, desligando-se dos valores proletários. Buscava outra maneira de viver, mantendo uma relação que incluía, em 1961, o livre trânsito a Berlim Ocidental. Isso permitia a contraposição entre os dois sistemas. E Siggi o comenta com Luise, como se houvesse na Alemanha Ocidental mais “liberdade” do que na República Democrática Alemã, a RDA. Ela mesma vivia o dilema de ser uma poeta com trabalhos censurados, pois eram considerados burgueses, individualistas. Via-se, assim, impossibilitada de tê-los publicados.  


 


            
Graf não discute as contradições da arte


            
Ao abordar este tema, o diretor Graf acrescenta ao problema da liberdade para a juventude, o da “liberdade de criação”, tema tão caro aos criadores culturais no Bloco do Leste. Como deveria ser a manifestação literária, artística e cultural no Socialismo, já que aos segmentos de trabalhadores culturais são atribuídas as tarefas de seleção, editoração, publicação e distribuição das obras? No sistema em formação, quando é necessário haver liberdade para aflorar idéias e soterrar práticas burguesas, há espaço para intervenção do Estado? As camadas populares não deveriam ter liberdade de acesso as mais amplas manifestações culturais e artísticas? Daí não poderia surgir uma arte libertária que deixasse sobressair novas estéticas, e valores identificados com o Socialismo em construção?



           
Graf não discute estes temas, fica na questão de o escritor-vítima, que apenas lamenta que o Estado não publique sua criação. Luise apenas sonha ter sua poesia lida. Como não consegue vê-la publicada, faz saraus em sua casa onde a lê para os amigos, inclusive Siggi, que se torna seu cúmplice. No entanto, muitos escritores conseguiram editar suas criações na época, outros fizeram suas obras circularem clandestinamente. Houve aqueles que, como Alexandre Soljenitsin (“O Arquipélago Gulag”, “Pavilhão dos Cancerosos”), se transformaram em porta-vozes da reação capitaneada pela grande burguesia ocidental e conseguiram grande destaque na mídia internacional. Depois, acabaram soterrados pelo obscurantismo e nem mesmo são lembrados hoje, apesar de continuarem vivos.



             
              
Juventude em tempo de revolução e reação


            


Luise, pelo contrário, consegue ter seu livro publicado devido ao amor de Siggi, que a presenteia com uma edição feita clandestinamente. Mas a jovem, tomada pelo medo e receosa de pôr em risco a vida do grupo a qual pertencia toma uma atitude que depois lhe parece banal. Justo ela, leitora de Henrich Böll, o maior escritor alemão do pós-guerra, não enfrenta a situação, no início como deve. Esta será a  decisão que irá definir seu futuro, não só como artista como também como ativista. Um ativismo ditado pelo comportamento da juventude, que, em princípio centra-se na música, no comportamento, depois evolui para a contestação. São diferentes dos jovens de “Amantes Constantes”, de Philippe Garrel, reprimidos e presos pela polícia francesa. Há algo semelhante na forma como foram tratados, mas as conseqüências são diferentes.



             
Os rebeldes de Garrel acabam no puro individualismo, ouvindo música e fumando haxixe. Os de Graf, pelo contrário, mostram-se dispostos a insurgir-se contra o Estado. De qualquer forma, ambos estão bem distantes do movimento chinês, ocorrido durante os levantes que levaram a queda do Muro de Berlim. Mais organizados e com apoio internacional, eles resistiram por dias, até serem dispersos pelas forças comandadas por Den Xiao-Ping e Li Peng. Todos, sem exceção, não se mostraram libertários, com propostas de mudança para além do estabelecido. Não entenderam a natureza do sistema, tampouco têm perspectivas de construção de uma sociedade onde haja liberdade e compreensão da natureza de sua rebeldia. Graf não avança nestes pontos, deixa-os cair no vazio.



               
Em qualquer sistema, ela tenderá a mudanças, a processo de confronto, pois enxergará as relações sociais a partir da base real, ou seja, como a sociedade está estruturada para lhe oferecer opções de integração. Compreender este processo é uma virtude do novo sistema, ainda que as pressões do capitalismo em decadência se façam sentir. Caso contrário; poderá transformar rebeldia em revolução.


 


            
Diretor perde oportunidade de fazer um belo filme


           


Com estes temas importantes para uma reflexão sobre os rumos do Socialismo no Bloco Leste, a partir da RDA, Graf poderia ter feito um belo filme. Mesmo se contestássemos algumas de suas premissas. Principalmente no tangente ao papel do artista na Revolução Socialista, porquanto a criação artística tem parâmetros e termômetros que, muitas vezes, se chocam com o tempo político. Seria uma contribuição e tanto. Ele, porém, está mais interessado em manipular e, por isto, cai no maniqueísmo, na caricatura. O outro vértice da narrativa é a caracterização dos agentes de Estado, aqueles que zelam pela manutenção do sistema. Numa das cenas que melhor ilustram isto, Wolle afronta um deles e este se vinga, gerando conseqüências inevitáveis para o grupo de jovens.



            
Esses agentes são retratos como nas produções hollywoodianas: trata-se de idiotas. São feios, truculentos, vingativos e violentos. Enfim, cabe a eles o papel de vilões. Seus diálogos soam falsos, quando defendem os trabalhadores o fazem como se estar ao lado deles fosse um castigo. Parecem ter saído daqueles filmes das décadas de 50 e 60, com seus cabelos escovinha, blusões de couro negro, grossos, sem a mínima educação. Ao fazê-los desta forma, Graf cai no lugar comum, no clichê. Perde-se em cenas de violência gratuita que, ao invés de reforçarem a ação, torna-a vazia. As seqüências finais, cheias de reviravoltas enfraquecem sua própria “denúncia da RDA”. Quer consignar a mutação da rebeldia da juventude em contestação ao sistema e, na pressa de mostrar a truculência, transforma seu filme  num drama policial.



             
O fato é que a estética hollywoodiana funciona para aqueles que não querem nada, além disso. Fica a impressão de que a vida na RDA era um inferno, sem liberdade alguma. E ficou pior quando o muro foi construído. Foi o responsável para que Luise não vivesse a intensidade de sua poesia e seu amor por Siggi não a fizesse feliz. Ela, no entanto, ao lhe enviar a carta deixa a dúvida de, ao optar por permanecer na RDA, acreditava na mudança do sistema ou se o via como algo necessário à sua existência que, mesmo imperfeito, poderia evoluir. Graf não nos dá pista alguma. Com o comentário de Siggi entende-se que ela perdeu-se, anônima, nas trilhas da história, e só ele e alguns poucos souberam do valor de sua poesia, que refletia seu estado de espírito naqueles anos que precederam à construção do Muro de Berlim.


 



“Um Amor Além do Muro” (Der Rote Kakadu). Alemanha, 2006, 128 minutos. Direção: Dominik Graf. Elenco: Max Riemelt, Jessiva Schwart e Ronald Zehrfeld.
 

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