Um bravo guerreiro em Sertânia

A obra-prima de Geraldo Sarno me recorda outro filme, também primoroso, de Gustavo Dahl, chamado O Bravo Guerreiro.(1969).

O jovem cangaceiro Antão é interpretado por Vertin Moura i Foto: Divulgação

Volta e meia o cinema nacional retrata o cangaço, o que faz de Sertânia (2020), de Geraldo Sarno, uma espécie de homenagem aos filmes desta temática, eternizada nas lentes de Glauber Rocha.

Sertânia, denominação de lugar afastado do centro urbano, é o ambiente para as aventuras do bando de capitão Jesuíno, precursor do cangaço no Nordeste brasileiro.

No bando se destaca a figura de Antão, que busca vingar tanto o assassinato do pai pela guarda do Império, quanto a miséria sofrida pelo povo sertanejo, acossado pela seca e devastado pela malsucedida Guerra de Canudos.

O heroísmo do jovem cangaceiro conflita com a autoridade do capitão, pois a natureza do bando é diversa: serve, por valentia, ao sonho de liberdade popular, mas também serve, a soldo, para defesa das terras e interesses de grandes fazendeiros.

Por valentia ou por dinheiro, Jesuíno dá cabo da vida de Antão, deixado para morrer no meio do mato. O estupor do cangaceiro diante da morte nos conduz para imagens delirantes, em um belo trabalho de fotografia e montagem.

É quando somos convidados a sondar as motivações de nosso herói. Ao que parece, a sede de justiça de Antão carrega a profunda necessidade de entender quem foi seu pai, para então chegar até outra resposta: que tipo de homem, que tipo de herói ele mesmo pode ser?

O conflito de identidade de Antão pode servir de alegoria para o próprio papel do cangaço em nossa história – pergunta esta que, aliás, não é nova. Mas é no desfecho de Sertânia que somos confrontados com uma questão ainda mais difícil, porém determinante para todos nós.

Afinal, quem é o povo de Sertânia? Quem é esse povo que está aí para ser salvo? Quem é, definitivamente, o povo brasileiro?

Esta obra-prima de Geraldo Sarno me recorda outro filme, também primoroso, de Gustavo Dahl, chamado O Bravo Guerreiro (1969). Encontro semelhanças entre Antão e Miguel Horta, jovem deputado do Partido Radical que muda de estratégia ao optar pela conciliação com o Partido Nacional.

A trajetória do idealista Miguel Horta culmina, também, em um fim trágico. Antes de morrer, o deputado tenta instigar cada sindicalista a quem se dirige no último discurso político de sua vida.

A tentativa de Horta é dizer para esse povo, esse mesmo povo brasileiro a ser salvo da fome, da exploração e da morte, que não há escapatória para o herói, porque os heróis não existem, ele mesmo não existe. A liberdade do povo é algo para o próprio povo, essa massa sem rosto, resolver. Um trabalho irremediavelmente coletivo, por mais complicado que possa ser equacionar uma ideia de coletividade.

Paira, sobre as duas películas, a mesma interrogação: como guiar esse povo sofrido para a liberdade, se esse povo mesmo não existe? O povo brasileiro não existe, é o que parecem dizer, Dahl e Sarno, em ambas as histórias.

Não existe herói porque não existe povo, e não existe povo porque não existe nação. A conclusão é uma só: o Brasil não existe. Um grande problema para o nosso cinema, para a cultura brasileira, de um modo geral. Era assim em 69, continua sendo assim em 2020.

  • Sertânia circula em festivais de cinema, tendo sido exibido, mais recentemente, pelo Festival Ecrã.

O Bravo Guerreiro está disponível no Youtube

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