Um conto curto

Multatuli (em latim, “sofri muito”, pseudônimo de Eduard Douwes Dekker) foi um autor marcante da “pobre literatura da rica Holanda” do século XIX, na opinião de Aurélio Buarque de Holanda e Paulo Rónai, que traduziram este instrutivo e curto conto abaixo

Providência


No alto de uma torre encontrava-se uma mãe com o filho. A criança caiu-lhe dos braços.
No mesmo instante, caiu outro objeto qualquer. Tinha o mesmo volume da criança. O mesmo peso da criança. A atração da terra, a resistência do ar… tudo quanto influía no objeto e na criança era igual.
Mas a criança vivia, e tinha mãe, que arrancava os cabelos de tão desesperada.
O outro objeto não interessava a ninguém.
– Deus, ó Deus, meu filho, meu filhinho querido! – gritou a mãe. – ò Deus, protege o meu filho!
Ninguém rezava pelo objeto.
E os dois corpos se precipitavam lado a lado, com velocidade igual.
E a Natureza – isto aconteceu antes de Newton*; ela, porém, sabia exatamente como mandar cair –, a Natureza seguia o seu caminho. Calculou com toda a calma os quadrados… providenciou mais resistência embaixo, onde o ar é menos rarefeito… deduziu o excedente da velocidade…
A mãe gritou mais uma vez:
– Ó Deus, ó meu filho!
A criança atingiu o solo, despedaçou-se. A mãe, que rezara em vão, morreu. O pai do pequeno enlouqueceu…
Mas o saco de cortiça, ou presunto, ou fosse o que fosse, que caiu da torre simultaneamente com a criança, continuou um saco de cortiça ou um presunto, tal e qual, como se nada houvesse acontecido.
E, no entanto, não se tinha rezado por essa cortiça.
Será “bom” assim? Sem dúvida alguma! A menor divergência, o menor desvio causaria desgraça bem maior que a morte de uma criança.
Não conto esta história para censurar a Natureza, mas para fazer saltar aos olhos que não adianta rezar; o que se deve é segurar bem o filho quando se está no alto de uma torre.
De fato, se agirmos assim – pois a Natureza cuida disso também –, a criança não cairá. Nisto ela é tão digna de confiança como na aplicação das leis de Newton, quer dizer, de suas próprias leis, de que Newton descobriu uma pequena parte depois que elas desde tempos imemoriais tinham funcionado com perfeição.

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