Um rato que ruge
Bolsonaro é um presidente que, no exercício do cargo, ameaça dia e noite a democracia. Deve ser combatido pelos democratas com a mesma intensidade com que ele ataca a Constituição.
Publicado 24/04/2020 19:58 | Editado 24/04/2020 20:39

Bolsonaro apareceu em cena representando três personagens nos últimos dias.
O primeiro, o de um presidente forte, discursou enraivecido, entre tosses e suor, diante do Quartel-General do Exército,a uma manifestação de defensores de uma ditadura militar. O presidente atacou novamente as instituições da república em um gesto calculado para assustar… Bolsonaro, e o bolsonarismo como movimento, conta que os demais tenham medo dele. No dia seguinte, um post do filho 02 mostrava homens armados em defesa do pai, aparentemente dispostos a morrer e a matar pelo “mito”.
Instituições e sociedade civil ameaçadas, mais um crime de responsabilidade na lista dos muitos que Bolsonaro cometeu e que embasam os 20 e tantos pedidos de abertura de processo de impeachment que repousam sobre a mesa de Rodrigo Maia.
O segundo personagem é o de um presidente negociador, buscando pontes com parlamentares, vestindo um figurino bem diferente daquele do Bolsonaro responsável pela implosão da base no próprio partido que alugou para disputar a presidência. Na cena, ele faz em público e didaticamente o que antes procurava esconder dos holofotes: foi pro vale tudo da cooptação para compor uma sustentação, qualquer que seja, no Congresso Nacional. Nem a cortina de fumaça das fake news propagadas pelo “Gabinete do Ódio” (assim chamado até pelo presidente…) está escondendo o pavor diante de um processo de impeachment.
Cereja do bolo, a aproximação com Roberto Jefferson e Arthur Lira (sim, eles!), convertidos em denunciantes do “golpe” que Rodrigo Maia, Davi Alcolumbre e o STF estariam preparando. Bolsonaro, psicanaliticamente, projeta o seu golpismo cada vez mais evidente aos outros. Ventilou-se, inclusive, a recriação do Ministério do Trabalho para garantir na Esplanada um lugar a indicados de Jefferson. Ora, o quanto de verniz – mentiroso – de “nova política” restará após essa aliança, é trabalho para os robôs que impulsionam as campanhas de despiste dedicadas a fornecer narrativas aos seguidores do presidente.
O terceiro, depois de prometer “restabelecer a verdade” da saída de Sérgio Moro do Ministério da Justiça, limitou-se a um apelo vazio, sentimental, à sua própria base, sem adentrar na defesa das acusações que o ex-ministro lhe jogou na cara. Com olhos tristes, Bolsonaro declarou-se decepcionado…
Fato é que, entre os três personagens que se apresentaram ao Brasil, o concreto é o apavorado presidente que se mostra tão mais agressivo quanto isolado. O governo Bolsonaro está derretendo e isso explica sua indefinição no palco.
O poder institucional do presidente, que já era limitado por suas deficiências políticas evidentes, foi ainda mais restringido na crise do coronavírus. A saída de Mandetta não foi nenhuma recuperação da autoridade de Bolsonaro, mas uma ampliação do controle militar de seu governo. Além do sinistro Nelson Teich, o general Eduardo Pazuello foi incorporado à Esplanada na posição de secretário-executivo do Ministério da Saúde. Indicativo de que a gestão do silencioso novo ministro – que não fala alegando a necessidade de estudar mais para se posicionar em meio à urgente guerra do país contra o vírus – terá um vigia leal à ala militar. Não anda elevada a confiança entre os membros do governo.
O general Braga Neto que, segundo seus pares, conhece o nome, endereço e CPF de cada miliciano do Rio de Janeiro, já foi chamado pela imprensa estrangeira de “presidente operativo do Brasil”. Oficialmente, é ministro chefe da Casa Civil. Na semana passada, anunciou um plano de investimentos em obras públicas para superar a recessão. Sem entrar em considerações mais sérias sobre a viabilidade e os estudos necessários para embasar o plano, trata-se de uma inversão na linha seguida pelo governo. É justamente o contrário do que prega a política de Paulo Guedes… e uma curiosa homenagem ao PACs dos governos Lula e Dilma.
Na coletiva de anúncio desse que se apresenta como o plano de salvação da economia do país, iniciativa mais ambiciosa do governo federal para superar os impactos econômicos negativos da crise sanitária, Braga Neto sequer mencionou o nome de Bolsonaro. E também não se deu ao trabalho de incluir Paulo Guedes na mesa diante dos jornalistas.
Isolado dentro e fora do governo, o presidente ainda tem que lidar com o avanço das investigações da Polícia Federal sobre ele e sua família.
A crise com Sérgio Moro, um adversário para 2022 que Bolsonaro procurava manter debaixo de sua tutela, ilustra o quanto ele está preocupado com isso. São muitos os esqueletos que podem dar materialidade a mais de um crime de responsabilidade, além das acusações feitas por Moro na sua coletiva de saída: vinculação à disseminação de fake news; conteúdo da perícia nos celulares do miliciano Adriano da Nóbrega, morto na Bahia; investigações que cheguem ao mandante do assassinato de Marielle Franco; etc, etc.
Ao contrário do que disse o presidente na sua coletiva de resposta ao agora ex-ministro, os vínculos da família Bolsonaro com milicianos são tão notórios que só razões políticas contiveram avanços processuais. Eles vão de fotos em churrascos e pescarias a empregos em gabinetes, passando pela vizinhança nos mesmos condomínios, com direito a pistoleiros apertando a campainha da casa do presidente por “engano”. Bolsonaro sabe que não pode contar para sempre com a cumplicidade sincera de policiais e sistema judiciário. Sua tática agressiva e a adesão – pelo menos nas redes e no discurso – ao projeto radical da ultradireita olavista que o cerca deixaram de orelhas em pé até setores que votaram nele em 2018.
Ou seja, Bolsonaro tem contas a pagar e sabe que a fatura será entregue.
Se atravessou o Rubicão de sua tensa relação com Moro, foi porque não teve tantas alternativas para proteger a si e aos filhos. A saída de Moro é um golpe para a base fiel do bolsonarismo, a única para quem o presidente efetivamente fala. Além disso, mais que um ministro fraco, ele era a consubstanciação da aliança com a Lava-Jato, que elegeu Bolsonaro. Essa ruptura em meio à crise sanitária e política pode acelerar a desintegração do presidente
Sem amparo no Congresso, atacando o STF desde a campanha eleitoral, cada vez mais isolado dentro da própria base de sustentação de seu governo, Bolsonaro se divide entre os papéis de capitão assustador, de líder político que mendiga apoio no varejo e de um magoado presidente que não tem retribuído o carinho que dedica a seus subordinados. Tudo isso, em meio à sua campanha sinistra contra as medidas de combate ao coronavírus.
Por agora, lhe restam apenas as orações oportunistas e o olavismo fanatizado, que ainda consegue criar conflitos absolutamente desnecessários com a China, principal parceiro comercial do Brasil.
Bolsonaro é sim perigoso. É um presidente que, no exercício do cargo, ameaça dia e noite a democracia. Estar enfraquecido não quer dizer que seja também inofensivo, principalmente se considerarmos que boa parte de seu apoio vem de criminosos milicianos e violentos agentes armados. Mas, certamente, não tem o poder que gostaria de ter quando posa de líder esbravejante diante de defensores de regimes de exceção.