Um roteiro de “A mais longa duração da juventude” para o cinema

O falecimento de Paulo Dantas, e de tantos  militantes históricos contra a ditadura, tem acendido na gente uma chama de urgência

Nestes recentes dias, o falecimento de Paulo Dantas, e de tantos  militantes históricos contra a ditadura, tem acendido na gente uma chama de urgência. Isso quer dizer, num sentido mais claro: os amigos, companheiros e camaradas que partem anunciam: o fim de nossas próprias vidas está próximo. Mas isso quer dizer também o mais importante: a razão de viver se torna mais imperiosa. Ou dito de outra maneira: façamos urgente valer a pena a nossa passagem pelo povo do Brasil. Mas como? No meu caso particular, isso significa que devemos falar com ousadia, talento e coragem pela literatura, pela arte, que vive e renasce além dos nossos dias.

Perdoem se no primeiro parágrafo fui tão sério. Ou “pesado”, como falam os jovens quando se deparam com os problemas angustiantes. É que nesta semana, José Antonio Spinelli, professor da UFRN e conceituado cientista político, me incentivou para que escrevêssemos, eu e ele, um roteiro para o cinema do romance “A mais longa duração da juventude”. Ele, cujo tempo de jovem foi modelo de personagem do romance, tem autoridade e gênio contínuo, até hoje. E com a luz de guerra destes dias, foi uma ordem.

Aqui vai um trecho de episódio do roteiro. Como falava Ismael Silva, “espero que vocês gostem”.                  

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Companhia de Eletricidade de Pernambuco, no Recife, Fernandes Vieira. 1970. Calor no escritório do Almoxarifado da empresa, um barraco imenso de madeira, telhado de amianto. No interior, ventiladores grandes como este https://http2.mlstatic.com/D_NQ_NP_683764-MLB71416612575_082023-O.webp

Súbito, Luiz do Carmo bate à janela envidraçada do escritório. As notícias não devem ser boas, como sempre. O seu rosto gordo, sem pelos, que ainda não havia recebido o bigode Pancho Villa de anos depois, bate na vidraça da janela do barracão da companhia. Os colegas de José se viram, não sabem quem bate. E veem um estranho. Coisa mais bandeirosa, nas circunstâncias da ditadura, o rosto assustado de um jovem a bater na janela.

Um funcionário aponta o suspeito, que faz para José (aquele que gosta de poesia) gestos desesperados, para que venha para fora,  urgente. Em vez de entrar – não há proibição para que não entre no escritório -, Luiz do Carmo bate à janela, ora forte, ora mais forte, com os olhos esbugalhados a fazer sinais, acenos vigorosos, rápidos, para que vá até ele, para o lado de fora do barracão. José sai, atrapalhado, porque sabe da desconfiança com que os colegas o acompanham pelas costas. Ele imagina que nada de bom virá. Sai até à frente do escritório.

– A repressão me procurou no colégio – fala Luiz do Carmo.

– Foi? – José responde com uma entonação de “você não podia guardar essa notícia até o fim do expediente?”. Ou pior: “o que é que eu posso fazer com a polícia nas tuas costas?”. No entanto, a decência, um outro nome da solidariedade, silencia o egoísmo na  sua voz, que pergunta:

– Mas foi assim, do nada?

– Tem um tira lá na turma do Colégio,  ele me entregou. Olhe. Se a polícia for na secretaria, vai pegar o meu endereço de casa – Luiz do Carmo fala.

– Sei, entendo. Agora, a coisa é séria  – e José começa também a entrar na vizinhança do medo

– Agora, tenho que ficar clandestino – Luiz do Carmo continua, rápido. – Eles não podem me pegar. Não podem. Eu dirijo a União Brasileira de Estudantes Secundaristas no Recife.  

Luiz do Carmo é dirigente com esta cara de criança, sem pelos no rosto.

– Acabo de ser apresentado à direção – José fala. – Que momento, amigo, estou honrado. – E olha para trás. A responsabilidade sobra para José, que fala:

– O que é que posso fazer? Eu sou nada, nas guias de material da empesa, escrevo poesia de versos de parafusos.

– Os presos políticos morrem de tortura ou voltam fantasmas em forma de gente, você sabe – Luiz do Carmo lhe diz. 

– Por solidariedade, eu também posso ser preso, torturado- José lhe responde.

– Mas você é simpatizante, a barra pesa menos contigo.

– Puxa, que alívio!

– Mas se eu cair, companheiros importantes poderão cair também. O cacete em cima de mim vai ser fuderoso pra que eu abra.

– Então você poderá abrir o meu nome em segurança?

– Não! Eu não vou abrir o nome de ninguém. Eu posso ser morto. Não abro.

Luiz do Carmo tem os olhos arregalados, do lado de fora, no pátio da Companhia de Eletricidade de Pernambuco. Eles são vistos por todos os funcionários, José olha para trás e recebe os olhos investigativos.

– Puta que os pariu – José resmunga. 

– A família da minha namorada me disse – Luiz do Carmo fala. – Eu estou na lista. Eu vou entrar nos cartazes de “Terroristas, procuram-se”. Aquelas calúnias dos cartazes nas ruas.

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– Absurdo, rapaz: você não é terrorista – José lhe responde. .

– Eu vou ser mais uma foto.

– O que podemos fazer? – em voz baixa, José lhe pergunta.

José se vê também na lista dos terroristas procurados. 

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E volta a perguntar:

– Onde vai ser o nosso ponto?

– Na Praia dos Milagres, em Olinda. Às oito horas da noite.

E sai. As costas de Luiz do Carmo se veem num movimento apressado.

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