“Uma garota dividida em dois”: equilíbrio arriscado

Claude Chabrol volta com filme sobre as relações amorosas nos tempos atuais em que o que conta não é a paixão ou, por que não, o amor, mas os interesses materiais que ela pode envolver.

No cinema de Claude Chabrol, os personagens se movimentam em ambientes que traem sua maneira de ser e de agir. Funcionam como armários de onde querem sair, mas os imperativos sociais os obrigam a estarem sempre nos mesmos espaços. Em “Uma garota dividida em dois”, Paul Saint-Denis (Benoît Magimel), o jovem herdeiro de uma grande empresa, e Charles (François Berléand), escritor de sucesso, sempre se encontram em situações que, ao invés de aproximá-los, os afastam cada vez mais. Lembra “Ciúme”, filme de Chabrol dos anos 90, em que o dono de um chalé, persegue a mulher pelos cômodos, por temer que ela esteja se encontrando com um suposto amante. O ambiente aqui, os aprisionam, não os libertam. Paul, em dado momento, encontra Charles com a mulher (Valerie Cavalli) e a agente Capucine Jamet (Mathilda May) numa mesa de sofisticado restaurante, que ele diz estar sempre lhe reservada. Tudo o que o outro faz o incomoda, a ponto de Charles ditar seu comportamento.


 


 


Um terceiro personagem, a garota do tempo, Gabrielle (Ludvine Sagnier), estrela em ascensão na TV, adiciona um novo elemento a esta relação, dominada pela ausência do pai. Tanto ela como Paul carece desta figura impositiva para a transição de ambos para vida adulta. Ele lida pouco com esta carência, que a mãe Geneviéve Gardens (Caroline Sihol) tenta exercer sem sucesso. Gabrielle, no entanto, sai-se melhor, buscando, ela mesma, seus caminhos, até encontrar Charles, sessentão, sedutor, amante experiente, e o tornar seu par constante. Fato suficiente para aguçar a inveja que Paul tem do escritor, que poderia ser pai de ambos. Um triângulo amoroso diferente se estabelece, sem que uma parte dele se consuma na forma tradicional de um dos amantes manipular seus parceiros. Gabrielle aqui é amante de um, Charles, e objeto de desejo e de vingança do outro, Paul.


 


 


O que importa é a trama em si


 


 



Dito desta forma, “Uma Garota Dividida em Dois” é um complexo drama, “filme cabeça” para poucos. Mas se tratando de Chabrol a simplicidade impera. Seu cinema é acadêmico, com planos abertos, os personagens se movendo no quadro enquanto interagem. Quando muito um belo movimento de câmera para acentuar a ação. O que importa é a trama em si; a forma como a ação evolui: cria texto e subtexto, para, no decorrer da narrativa, surpreender o espectador. Ele apresenta os personagens por inteiro, como acontece com Paul, que surge acompanhado de um secretário, que mais parece sua sombra. Irritadiço, arrogante, desequilibrado, com um penteado punk de butique, ele invade os ambientes sem cerimônia, pondo a todos em plano secundário.  Percebe-se, desde o início, que algo o incomoda. Diferente de Charles, introspectivo; Paul se desloca nos ambientes como se a ele pertencessem. Há, no entanto, algo que os aproxima de Gabrielle; a certeza de que ela os aceitará.


 


 


Ela, embora jovem, inexperiente, tem suas vontades, modo de escapar às armadilhas espalhadas por Paul, com seu assédio, obviedades, tentativas de manipulação. Ela o mantém distante o suficiente para poder se movimentar com Charles. A este se entrega, sem se desligar da carreira na TV, que lhe oferece a chance de ascender tornar-se, ela mesma, uma estrela. A relação com Charles, portanto, não a impede de exercer sua liberdade. Paul, pelo contrário, quer aprisioná-la em seu espaço, com suas regras e mimos. Às vezes nesse vai-e-vem entre o amante, Charles, e o apaixonado Paul, Chabrol dá a impressão de que a trama segue o ritmo romanesco, com a mudança de cenários, de situações, se intercalando para levar o espectador a ver menos que mostra. Isso se dá na primeira parte do filme, quando os personagens fixam suas intenções e delas não se demovem. Paul quer conquistar Gabrielle, que se apaixonou por Charles e não quer lhe dar chance alguma.


 


 


Charles quer Gabrielle, mas não deixa sua mulher


 


 



Uma série de situações, criadas por Chabrol, dá a entender que Paul fará tudo para conquistar Gabrielle e que Charles pretende manter a relação sem atropelos, sem se afastar da mulher com quem vive há décadas. E a trama vai-se encadeando sem novidade alguma, por mais que o espectador acostumado a seus filmes estranhe que algo ainda não aconteceu. Isto até o mundo burguês, a que Paul pertence, aparecer em toda sua extensão, através de Geneviéve. A partir daí entende-se o comportamento de Paul, o ódio que tem pela mãe, o modo grosseiro com que a trata e às irmãs e sua busca de afirmação. Ele está sempre tentando estar no controle da situação, porém, Geneviéve não o deixa. Dominar Gabrielle então se torna objetivo. Entende-se, assim, que ele não a quer, por estar apaixonado, sim para vingar-se da mãe e, principalmente de Charles.


 


 


Na segunda parte de “Uma Garota Dividida em Dois” a trama linear ganha outros contornos. Deixa de ser o jogo de amantes para virar algo assustador. A inveja, o ciúme, o ódio de Paul por Charles fica doentio. Ele passa a viver em função do rival. Tudo nele o irrita. Vê-lo é um grande sacrifício. Principalmente porque Gabrielle prefere o escritor a ele. E passa a se mover nos ambientes feito um animal acuado, disposto a atacar a tudo e a todos. Charles o percebe. Sua relação com Gabrielle chegou a estágio perigoso. Precisa escapar antes que sua tranqüilidade seja posta abaixo. Chabrol efetua esta mudança de forma sutil, sem deixar para o espectador alguma pista. Usa artifícios para mantê-lo na trama, lançando mão de pequenos detalhes, ligações que fazem a narrativa andar. E Charles tenta estar de novo no leme. Uma mudança, no entanto, foi operada pelo seu gesto brusco ao abandonar Gabrielle, e tudo vem abaixo. Ele, no entanto, não precisa se deslocar para retomar a relação. No entanto, Chabrol usa para isto um artifício que soa novelesco.


 


 



Chabrol usa artifício para encurtar ação


 


 


Uma forma de recolocar personagens na trama, sem transição alguma, lembra os aviõzinhos usados por John Houston, em “A Honra do Poderoso Prizze”. Para dizer que o personagem de Jack Nicholson se deslocava de um estado ao outro dos Estados Unidos, ele mostrava apenas um avião de carreira se deslocando no ar. Chabrol faz o mesmo, se utilizando de uma notícia de TV e uma ligação de celular. E Charles adentra, de novo, na vida de Gabrielle de forma adversa. Já não é o senhor dos espaços. O homem que ela encontrou no camarim da emissora onde trabalha sendo maquiado para uma entrevista, É o ser acuado. Perdeu o bibelô e quer encontrar uma maneira de recuperá-lo. Aqui o amor é apenas posse. Gabrielle cumpre o papel de ser a vingança de Paul contra Charles e de ser a algoz de Charles por ter sido abandonada por ele, sem se entregar de fato a Paul. Uma estranha manipulação que porá a todos num equilíbrio arriscado.


 


 


Chabrol não os poupa. Todo o universo dos amantes desmorona porque jogaram alto demais. Nenhuma deles é senhor da situação. O único que ainda se ilude é Paul. Enfim, ele está no leme. Pode fazer o que quer com Charles e se dispor de Gabrielle. De novo, o mundo burguês se intromete com suas regras. Geneviéve luta para controlar Paul e também a Gabrielle. Não há espaço para alguém vindo de baixo, igual à garota do tempo, que, embora filha de dona de livraria, Marie Deneige (Marie Bunel), e estrela em ascensão na mídia, não traz dote algum para a milionária família de Paul. A luta de classe, sempre introduzida por Chabrol em seus filmes – lembre-se de “Mulheres Diabólicas”, em que duas empregadas domésticas assassinam seus patrões -, aparece aqui na forma romanesca, de novo, por meio da história da garota pobre que ascende ao mundo dos ricos. Ela, no entanto, não o faz por seus meios, desconhece afinal o que faz ali naquele ambiente, pelo qual nenhum esforço fez.


 


 



Paul Gaudens, vítima, pensa que é algoz de Charles


 


 


A tentativa de Chabrol escapar aos clichês do triângulo amoroso, usando observações do cotidiano, das relações de classe, da carência do pai, sem adentrar ao terreno freudiano propriamente dito, faz de “A Garota Dividia em Dois” um filme vai de um gênero ao outro: do drama ao policial e deste ao filme de mistério. Utiliza-se da loira de filme de suspense, à Hitchcock (veja “Marnie, Confissões de Uma Ladra”, “Um Corpo que Cai”), para mostrar a fragilidade de Gabrielle – esta, entretanto, logo o desmente; dada à liberdade que busca desfrutar em sua vida de casada, mesmo estando sob a pressão de Paul. Mas compreende que caiu numa armadilha da qual não pode agora sair, a mesmo que se insurja contra Paul. Deixa-se manipular por ele, numa demonstração de que está sob seu controle. A cena em que ele a leva a usar o vestido bordô, faz do fetiche o ponto de atração e logo o desfaz.


 


 


O imaginário do espectador volta-se para a sedução e também se desmancha numa seqüência sem preparação alguma. Toda a trama parece se encaminhar para aquele desfecho, pois Chabrol o havia escancarado antes, quando Paul a amedrontara, mostrando-lhe uma arma. Com total domínio da narrativa, ele muda o ponto de vista do espectador, reafirmando o quanto Paul foi dominado durante todo tempo por Charles, principalmente quando este se separou de Gabrielle. A vítima funciona como catalisadora da reação do inimigo que, sem saber como se livrar do que o incomoda, procura eliminá-lo. E o objeto de desejo de ambos se desprende das amarras criadas por eles. Se valendo de várias elipses, Chabrol se desvencilha também das seqüências de tribunal, para concentrar-se no destino de Gabrielle. Deixa para trás a trama policial, apenas um detalhe na narrativa, e entra no ilusionismo puro, fazendo jus ao título do filme:”Uma Garota Dividida em Dois”.


 


 


Direções se encadeiam e iluminam a narrativa


 


 


Os cortes abruptos de uma direção para outra poderia fazer outro diretor se perder, porque dá ao espectador a impressão de entrar em outra história, dado ao recomeço da ação em outro nível – o da metáfora. E lhe dissesse: faça de conta que a brilhante carreira de Gabrielle; dividida entre dois amores, terminou assim: no palco de um teatro de ilusionismo. Com Chabrol as direções se encadeiam e iluminam o que foi mostrado ao longo da narrativa. O sentido romanesco do filme é o que justifica as mudanças constantes de gênero e de situações, sem que o diretor perca o sentido narrativo e de conteúdo, que foge ao realismo ao chegar ao final.


 


 


O que vale então é o caráter de mutação das relações amorosas. Não estão mais presas às convenções da sedução, dos compromissos com o outro, das intenções perenes e da necessidade de se ver no outro. Embora conflitos interiores ditem as ações dos personagens, mostrando suas fragilidades, as normas e as convenções sociais e de classe continuam se impondo às atrações e ditames da paixão. A perda do amado levou Gabrielle aos braços de Paul e este ao tê-la se sentiu vingado, sem compreender as extensões das amarras de sua classe, que não admite a presença de alguém de fora de seu círculo. E procurou expeli-la tão logo teve a oportunidade, sem dó nem piedade. O sentido novelesco, de respeitar as convenções, com estereótipos em lugar de personagens, é burlado por Chabrol ao lançar mão de suas estruturas narrativas e logo revertê-lhas, jogando sobre o espectador uma metáfora sobre a evasão. 


 


 


Poder-se-ia dizer que Gabrielle decaiu ao aceitar se fazer de vítima de magia, portanto entrando para o universo do ilusionismo, quando deveria continuar se insurgindo contra a estrutura burguesa que a expeliu. Chabrol, porém, não buscou uma saída nos moldes realista, preferiu optar por algo menos palpável. Gabrielle, enfim, foi vítima de sua própria indecisão. No mundo burguês a ascensão via matrimônio é tão só uma questão romanesca. Hoje, diante dos contratos de separação de bens, ela poderá ficar de mãos vazias e futuro comprometido. E ter de seguir caminho adverso ao que pretendia é apenas um passo.


 


 


“Uma garota dividia em dois” (“Lê fille coupée en deux”). França/Alemanha. Drama. 2007. 115 minutos. Roteiro/adaptação: Claude Chabrol/Cécile Maistrel.Direção: Claude Chabrol. Elenco: Ludivine Sagnier, Benoit Magimel, François Berléand, Mathilda May, Marie Bunel, Caroline Sihol.


(*) Prêmio de Crítica 64º Festival de Veneza.

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