Urge cuidar das meninas

Teve medo de ficar só com o pai, que chegou a dizer que dali para frente
eles teriam uma vida maravilhosa. Só os dois.

Não sabemos proteger as meninas da violência sexual intrafamiliar. E nem
sabemos cuidar das sobreviventes. Não há políticas públicas voltadas
para tanto. De há muito sabemos que as meninas são as principais vítimas
de violência sexual. Em quase 100% dos casos, os criminosos gozam da
confiança da criança, sendo em geral o pai biológico, outros homens da
família e padrastos (bem menos do que pais biológicos). Isto é, o “lar
doce lar” é mais perigoso para as meninas do que a rua.


 



O sentimento de impotência diante da hiena que é a violência sexual
contra as meninas, em meu plantão da última quarta-feira, dia 2, se
apoderou de mim. O que eu fiz? Quase nada. Com mais de 30 anos
cotidianamente na luta feminista, fui nocauteada pelo telefonema de uma
pediatra que atendia a uma menina que exigia ser internada porque não
conseguia mais suportar o assédio sexual do seu pai biológico.


 



Estava no ambulatório de pediatria e disse que não voltaria para casa.
Constatei que, institucionalmente, não temos quase nada a oferecer às
corajosas meninas que dizem: meu pai abusa de mim. A menina cuja
história conto, além da auto-estima destroçada, é uma vítima de bullying
– intimidação e chantagem recorrente por parte de quem detém poder ou
força para intimidar ou perseguir outras pessoas. Ouvi da pediatra breve
resumo do caso, e até identifiquei a menina. Ela procura muito o Pronto
Atendimento (PA). É portadora de uma doença auto-imune, incurável e de
etiologia desconhecida, e muitas vezes é acometida por uma dermatite
esfoliativa generalizada, de difícil controle terapêutico, que deixa o
seu corpo em carne viva.


 



Assediada sexualmente pelo pai desde os 7 anos, segundo lembra, só teve
coragem de contar porque sua madrasta estava decida a ir embora. Teve
medo de ficar só com o pai, que chegou a dizer que dali para frente eles
teriam uma vida maravilhosa. Só os dois.


 



Ocorreu-me que a assistente social deveria instar a Coordenadoria da
Mulher da Prefeitura de Belo Horizonte a acolher aquela história e ver o
que poderia fazer, na medida em que aquele caso era do conhecimento do
Conselho Tutelar, que não tomou nenhuma providência para proteger aquela
criança. E que dessem um retorno.


 



Eu sabia que a nossa menina não poderia voltar para sua casa e que a
prefeitura não faria nada por ela, tão-somente porque jamais se preparou
para dar conta de tal demanda. Ao mesmo tempo, constatava que,
decididamente, aquele não era um caso para ficar numa emergência médica.


 



Desligado o telefone, respirei fundo e dei uma volta no PA, que
transbordava de gente deitada em macas pelos corredores. Na Observação
Pediátrica, não se podia andar, de tão cheia. Não havia vaga para
internar quem já estava com internação indicada. Uma imagem dantesca. A
diretoria do hospital, após comunicar às autoridades competentes, afixou
um cartaz na portaria: “Fechado temporariamente por superlotação”. Uma
figura de retórica. Sempre chega mais um que não pode ou não dá tempo de
ir para outro lugar.


 



Mas a nossa brava pediatra foi ao PA e, olhando-me nos olhos, disse: “Eu
sei, estou vendo que aqui não cabe mais ninguém, mas ela não pode ir
para casa! Ela precisa ficar aqui”. Ficou. Dali para a frente, o nosso
problema era encontrar uma maca para ela. Continua lá até hoje. Qual é o
nome de uma internação como esta?


 



Precisamos nos deter na história de vida dessa menina como parte de
nossas reflexões do Dia Internacional da Mulher, já que “Acabando com a
impunidade na violência contra as mulheres e meninas” é o lema da ONU
para o 8 de Março em 2007. Em tão breves linhas, entrego a integridade
física e a vida dessa menina nas mãos do presidente Lula, para que
encontre os meios de tornar o cuidado com ela exemplar do que fazer para
proteger a vida das meninas que, por seus próprios meios, conseguiram
sobreviver à violência sexual.


 

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